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Mais de cem entidades se unem contra eleição do Brasil na ONU

Jamil Chade

08/10/2019 08h50

Em protesto à presença de chanceler de Maduro na ONU, Brasil deixou suas cadeiras vazias no Conselho de Direitos Humanos, em setembro. Foto: Jamil Chade

 

GENEBRA – Num ato inédito, indígenas, defensores de direitos humanos, juízes, grupos anti-castristas, líderes do movimento sem-terra, LGBT, católicos, movimento negro, de mulheres, ambientalistas e entidades internacionais se unem em uma coalizão de mais de cem instituições para declarar sua preocupação com a candidatura do governo de Jair Bolsonaro na ONU.

Numa carta enviada a todos os governos na manhã desta terça-feira, o grupo pede que o Brasil não receba os votos dos países estrangeiros diante da ofensiva de Bolsonaro contra os direitos humanos e contra a democracia.

Na semana passada, o blog revelou como duas entidades já tinham lançado o mesmo apelo, algo inédito no Brasil desde a volta da democracia em 1985. Agora, a operação ganha uma nova dimensão, aprofundando a preocupação do governo brasileiro em relação à eleição.

A votação ocorre no dia 15 de outubro e deve ser o maior teste para a política externa do governo Bolsonaro. A Assembleia Geral da ONU vai escolher os países latino-americanos que permanecerão no Conselho de Direitos Humanos entre 2020 e 2022. Existem duas vagas e, até semana passada, apenas dois países concorriam: Brasil e Venezuela.

Na prática, bastava o Brasil somar 97 dos 194 votos para ser eleito. Mas o cenário mudou radicalmente depois que o governo da Costa Rica apresentou sua candidatura. Oficialmente, a estratégia dos centro-americanos é a de derrotar a Venezuela de Nicolas Maduro e, assim, impedir que Caracas continue no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Mas, dentro do Itamaraty, o temor é de que a Costa Rica roube votos do Brasil. A lógica é de que os aliados de Maduro não irão abandona-lo, principalmente diante do fato de a Venezuela ser a presidente do Movimento dos Países Não-Alinhados, que soma mais de 70 membros.

A situação do Brasil ficou ainda mais complicada diante da pressão das entidades da sociedade civil. Na carta enviada aos governos, o grupo indica que "o Estado brasileiro não reúne as condições mínimas para pleitear a renovação da sua candidatura ao Conselho de Direitos Humanos considerando os parâmetros da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, razão pela qual não recomendam à comunidade internacional de Estados que vote no Brasil para uma das vagas do Grupo da América Latina para o triênio 2020-2022".

Um dos destaques do movimento é o fato de a carta ter sido assinada por entidades que, tradicionalmente, estiveram em campos opostos no debate políticos. Entre os signatários estão organizações que combater o regime socialista cubano, uma das bandeiras usadas por Bolsonaro em seu discurso na ONU.

O mesmo texto é assinado por entidades de defesa do movimento LGBT e grupos da Igreja Católica, por ongs anti-Cuba e pelo MST, assim como referências internacionais como a Organização Mundial contra a Tortura , International Institute on Race, Equality and Human Rights ou a Washington Office for Latin America.

Também fazem parte do movimento entidades como a Associação Brasileira de Saúde Mental, Comissão Pastoral da Terra, Instituto Vladmir Herzog, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), FIAN Brasil, Pastoral da Juventude do Brasil, Rede Brasileira de Povos e Comunidades Tradicionais.

 

Leia abaixo a carta completa enviada aos governos estrangeiros, em inglês, francês, chinês, russo e árabe:

As organizações da sociedade civil brasileira manifestam sua profunda e grave preocupação com a candidatura brasileira ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDH/ONU), para o triênio 2020-2022. Estas preocupações já foram por diversas vezes manifestas pela sociedade civil e são reiteradas em razão da posição que vem sendo assumida pelo governo brasileiro nos espaços das Nações Unidas, inclusive e particularmente reiteradas pelo próprio Presidente no seu pronunciamento na abertura da 74ª  Assembleia Geral da ONU. 

As manifestações do governo brasileiro dando as razões de sua candidatura afrontam a tradição brasileira acumulada há décadas nas relações multilaterais e que sempre caminharam na defesa do universalismo dos direitos humanos. Elas não reconhecem os direitos humanos como proteção para todos e todas pois se orientam pela defesa de que há "humanos do bem", "humanos direitos", para os quais seriam razoáveis os direitos humanos, e outros seres humanos, os "bandidos" e aqueles/as que os apoiam, para que não seriam os direitos humanos. Posições deste tipo promovem a exclusão e o ataque a sujeitos como mulheres, LGBTIs, indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, negros e negras, juventude e outros e outras.

Estas reiteradas manifestações, que também vão se convertendo em práticas do governo brasileiro não são aceitáveis. Um governo que atua com sérias reservas, que promove ações que geram retrocessos na efetivação dos direitos e que seja anti-universalista não pode querer que a comunidade internacional acredite que tem efetiva disposição para se comprometer com a realização progressiva, universal, interdependente e indivisível de todos os direitos humanos para todas e todos. 

As organizações firmantes repudiam as ações práticas resultantes dessas posições do governo brasileiro, como a glorificação de atrocidades, levando inclusive a ataques à Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos; o desmantelamento do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, em violação ao Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura da ONU; o desmonte dos conselhos de participação social; a orientação do Presidente da República à caserna para comemorar o Golpe de Estado de 1964 e a negação oficial do mesmo golpe; a negativa categórica de continuar o processo de demarcação dos territórios indígenas; o desrespeito e ataque a povos e comunidades tradicionais; o rechaço ao reconhecimento de gênero, mediante explicação de voto durante a 41ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos; a agressão ao defensor de direitos Humanos Jean Wyllys, durante a 40ª sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos; o retrocesso no combate ao trabalho análogo ao de escravo; incitação à violência contra povos e comunidades tradicionais, suas terras e territórios; sanção de leis de porte de armas para proprietários rurais e  declarações que autorizam violências contra estas populações, incluindo sem terras, entre outras medidas. 

Posições e ações deste tipo são incompatíveis com os objetivos do Conselho de Direitos Humanos, cujo trabalho deve ser orientado pela universalidade, imparcialidade, objetividade e não-seletividade, diálogo internacional construtivo e a cooperação com vistas a aprimorar a promoção e proteção de todos os direitos humanos, de acordo com o Artigo 4º da Resolução nº 60/251 da Assembleia Geral das Nações Unidas. A mesma Resolução, em seu artigo 9º, determina que os membros do Conselho de Direitos Humanos devem manter o mais alto nível de proteção e promoção dos Direitos Humanos. Isto significa que, para qualificar-se a um assento no Conselho de Direitos Humanos, um Estado candidato deve dar o exemplo e envidar os melhores esforços na promoção e proteção dos direitos humanos. 

 As organizações signatárias afirmam que o Estado brasileiro não reúne as condições mínimas para pleitear a renovação da sua candidatura ao Conselho de Direitos Humanos considerando os parâmetros da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, razão pela qual não recomendam à comunidade internacional de Estados que vote no Brasil para uma das vagas do GRULAC para o triênio 2020-2022. Ademais, as organizações da sociedade civil esperam que a comunidade internacional de Estados monitore mais de perto a situação dos direitos humanos no Brasil.

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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