Topo

Bolsonaro reposiciona Brasil no mundo, com a chancela de Trump

Jamil Chade

25/09/2019 04h00

Trump e Bolsonaro se cumprimentam durante coletiva de imprensa na Casa Branca, em Washington (REUTERS)

 

Agenda ideológica, religiosa, ultraconservadora e nacionalista refunda política externa brasileira e passa a guiar a atuação do Itamaraty em órgãos internacionais e nas relações bilaterais. 

 

GENEBRA – Quando Jair Bolsonaro subiu ao palco da ONU nesta terça-feira, ele não apenas abriu oficialmente a Assembleia Geral das Nações Unidas. Seu discurso, ainda que repleto de inimigos imaginários, representou a inauguração de uma nova política externa, guiada por uma agenda ideológica, nacionalista, ultraconservadora e religiosa.

Bolsonaro atacou ONGs, caciques, governos e a imprensa internacional, proliferou teorias da conspiração e fez um discurso com a forte marca da demagogia de um populista.

Mas, depois do vexame do discurso de seis minutos em Davos, em janeiro, de uma participação apagada no G-20 e de ofensas a líderes internacionais, Bolsonaro se concentrou em traçar as linhas de sua estratégia internacional e em detalhar o reposicionamento do Brasil no mundo.

Seu discurso, portanto, serviu não apenas com uma mensagem à sua base no Brasil. Mas para dar uma indicação clara ao mundo de qual será a linha adotada a partir de agora pela diplomacia brasileira. Nos próximos meses, diversos desses pontos serão traduzidos em ações concretas e votos nos diferentes organismos internacionais.

Se a palavra "soberania" resume sua fala e foi repetida em diversas ocasiões, são suas consequências e seus corolários que chamaram a atenção de estrategistas e diplomatas estrangeiros ao longo do discurso de 31 minutos.

Um dos pontos centrais foi o recado à ONU de que a entidade está excedendo seu mandato. Para o Brasil, não existem interesses globais. "Não estamos aqui para apagar nacionalidades em nome de interesses globais abstratos", disse.

Ou seja: não há espaço para a ingerência externa em nenhum assunto e nem para obrigar governos a iniciativas globais. Bolsonaro emendou um alerta de que o Brasil não aceitará que haja uma mudança na ONU. "Esta não é a Organização do Interesse Global. É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer", disse.

Outra consequência da soberania é a recusa de que o tema das florestas tenha um perfil internacional. Bolsonaro rejeitou a tese de que a Amazônia seja um patrimônio da humanidade. Sem citar nomes, fez alusão ao "espírito colonialista" da França e preferiu dizer que a "nossa Amazônia" está "praticamente intocada".

Religião

O presidente também apresentou uma outra dimensão do redirecionamento da política externa nacional: o pilar religioso, a proteção aos cristãos e, claro, aos valores ultraconservadores.

Dentro do Itamaraty, essa guinada tem sido recebida como um sinal da transposição de sua guerra cultural doméstica para sua agenda externa e interpretada como um sinal de que o caráter laico do estado teria seus limites no Planalto.

Na prática, o governo indica que vai seguir uma linha de defesa de valores cristãos em sua agenda internacional, tentando moldar resoluções e textos à nova direção religiosa e vetando iniciativas progressistas na OMS, Unicef e outros organismos.

Disfarçando o tema no combate à "perseguição" de todas as religiões, o que o Brasil de Bolsonaro de fato quer é atacar aqueles que minam os valores ocidentais-cristãos.

"Preocupam o povo brasileiro, em particular, a crescente perseguição, a discriminação e a violência contra missionários e minorias religiosas em diferentes regiões do mundo", disse. "É inadmissível que, em pleno século 21, com tantos instrumentos, tratados e organismos com a finalidade de resguardar direitos de todo tipo e de toda sorte, ainda haja milhões de cristãos e pessoas de outras religiões que perdem sua vida ou sua liberdade em razão de sua fé", afirmou.

Além do cristianismo, Bolsonaro fez alusões à necessidade de se combater os "sistemas ideológicos de pensamento" que estariam "seduzindo" a sociedade. "A ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas", alertou.

"A ideologia invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família", disse. "Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica", disse.

O resultado desse posicionamento tem sido uma mudança profunda no padrão de votações do Brasil nos órgãos internacionais. Resoluções que tratam de igualdade de gênero, educação sexual ou direitos reprodutivos estão sendo vetadas.

Economia

Se a linha da política externa é ultraconservadora em seus valores, ela é também ultraliberal em sua estratégia comercial e econômica. Em seu discurso, Bolsonaro confirmou a intenção de adotar uma postura de abertura.

"Não pode haver liberdade política sem que haja também liberdade econômica. E vice-versa. O livre mercado, as concessões e as privatizações já se fazem presentes hoje no Brasil", disse Bolsonaro.

"Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. Em apenas oito meses, concluímos os dois maiores acordos comerciais da história do país, aqueles firmados entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e a Área Europeia de Livre Comércio, o EFTA", disse, prometendo mais acordos nos próximos meses e a adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Venezuela, socialismo e Trump

A nova agenda não estaria completa sem um duro ataque a qualquer sinal de governos que tenham simpatia por pontos de vista e políticas de esquerda. Para deixar isso claro, ele voltou a justificar as ditaduras do Cone Sul, desta vez feita sem citar nomes.

Parte do ataque visava Nicolás Maduro, na Venezuela, e o regime cubano. Mas o tom usado também serviu de alerta para qualquer outro país sul-americano que, em eleições, possam voltar a retomar o caminho de governos de esquerda.

Não faltaria, porém, um sinal muito claro em seu discurso de que existe sim um alinhamento total entre o Itamaraty e a Casa Branca. Donald Trump foi o único líder a ser citado pelo brasileiro e, claro, de forma elogiosa e agradecida por seu papel de aliado. Afinal, até a soberania tem seus limites.

Logo depois de Bolsonaro tomar a palavra, foi a vez do mandatário americano. A coincidência no uso de diversos termos não ocorreu por acaso. O discurso brasileiro foi alvo de consultas com a Casa Branca, algo inédito na história democrática do Brasil.

Bolsonaro na ONU: Veja a íntegra do polêmico discurso

UOL Notícias

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Bolsonaro reposiciona Brasil no mundo, com a chancela de Trump - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


Jamil Chade


Newsletter