Indígenas denunciam manobra de Itamaraty para esvaziar seus direitos na ONU
Jamil Chade
18/09/2019 04h00
(Alex Almeida/UOL)
Povos autóctones estrangeiros temem que posição de Bolsonaro acabe afetando os direitos de grupos tradicionais pelo mundo, entre eles os escandinavos e norte-americanos
GENEBRA – Grupos indígenas estrangeiros acusam o governo de Jair Bolsonaro de estar tentando esvaziar a aprovação de uma resolução na ONU (Organização das Nações Unidas) que trata de seus direitos. Na visão dos povos indígenas, a atitude do governo nas negociações nos últimos dias revela como o discurso adotado pela administração Bolsonaro começa a ser traduzido em posições e vetos em documentos oficiais da ONU.
O debate ocorre nas Nações Unidas às vésperas da viagem do presidente para abrir a Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e onde o tema das florestas estará no centro da agenda.
Por iniciativa de México e Guatemala, um rascunho de uma resolução está sendo negociado desde a semana passada na entidade internacional. O texto vai à votação na semana que vem, e o governo brasileiro garante que não irá vetar a resolução que renova o mandato da relatora da ONU responsável por proteger o direito dos povos indígenas.
Mas, nas negociações que já estão em andamento, o comportamento do Brasil deixou grupos indígenas irritados. Povos tradicionais das zonas escandinavas e russas têm acompanhado de perto a posição do governo de Bolsonaro e alertaram sobre a aproximação que existe entre a posição de Brasília e a de Moscou, hostil à ampliação de garantias. Grupos norte-americanos também têm colocado o Brasil como o "principal obstáculo" para o avanço dos direitos de indígenas no texto da ONU.
Os grupos autóctones, nos próximos dias, farão um intenso lobby com os governos do Canadá e europeus para que possam tentar frear a ofensiva de Brasil e Rússia, evitando o esvaziamento da resolução.
Indígenas brasileiros também farão pressão a partir desta semana em encontros nos bastidores com os governos da Suíça e representantes da União Europeia.
Nesta quarta-feira, o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) tomou a palavra na reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU para pedir que a comunidade internacional "monitore" a situação no Brasil, considerada por eles como "grave".
"Os incêndios intensos nas selvas do Brasil preocupam toda nossa família planetária", disseram. Rebatendo o discurso usado pelo governo, o grupo denunciou a iniciativa de Bolsonaro de "responsabilizar, sem provas, ONGs trabalhando na região".
Os grupos indígenas ainda criticam a flexibilização das regras para a mineração, o congelamento de demarcações, o corte de orçamentos e o discurso de ódio "que legitima o desmatamento e a violência".
Negociação
Ao longo dos últimos dias, a posição do governo brasileiro foi a de questionar termos usados no rascunho da resolução. Num dos parágrafos da resolução, por exemplo, o texto se refere à necessidade de que governos "reconheçam o impacto cada vez maior de mudanças climáticas sobre os direitos humanos" e sobre a "forma de vida de povos indígenas".
O trecho foi considerado como sensível por parte do Brasil, que pediu ao mediador da negociação para considerar que ele teria "reservas" sobre tal declaração. O texto também indica a necessidade de "respeitar, promover a e considerar" os direitos dos povos indígenas, em linha com o Acordo de Paris, sobre mudanças climáticas.
Outro trecho que também gerou resistência por parte do Brasil foi o que indica que povos indígenas devem estar envolvidos na busca por formas de mitigar mudanças climáticas, além de pedir que conhecimentos tradicionais sejam considerados nas estratégias de políticas públicas.
O governo brasileiro também resistiu a outro trecho do texto em que apontava para um papel mais ativo de grupos indígenas dentro da ONU, sempre que o assunto fosse de seu interesse. Para o Itamaraty, o assunto ainda está em discussão na Assembleia Geral da ONU, em Nova York.
Num outro trecho, o Brasil também pediu mudanças no texto, no que se refere à possibilidade de que povos indígenas sejam alvos de consultas e diálogos. O governo ainda indicou que não vê com bons olhos uma proposta para ampliar o mandato de um fundo internacional, para que também lide com questões indígenas.
Enfraquecimento
Fontes próximas à relatora da ONU para temas indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, indicaram ao UOL que têm recebido indicações de que existe um esforço de Brasília para que, nos bastidores, seu mandato seja enfraquecido.
Na prática, esse enfraquecimento da relatoria minaria a capacidade de grupos indígenas de levar suas denúncias à entidade internacional.
O argumento seria que, com a ampliação do mandato de outros mecanismos dentro da ONU, não haveria a necessidade de manter uma relatora exclusivamente ao tema. Diplomatas brasileiros negam que haja um esforço neste sentido durante a reunião de 2019.
Victoria causou forte irritação na diplomacia brasileira ao criticar a situação dos indígenas e denunciar o esvaziamento da Funai e outros órgãos. Ela, porém, não tem direito a mais um mandato, já que completará seis anos nesta função.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)