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OAB denuncia Brasil na ONU e governo insiste em chamar 1964 de "evento"

Jamil Chade

11/09/2019 10h17

Em Genebra, OAB se uniu ao Instituto Vladimir Herzog para denunciar ameaças ao "frágil processo de redemocratização" no Brasil. Entidades solicitaram que Nações Unidas monitorem atitude do governo sobre crimes da Ditadura

 

GENEBRA – A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pede que os mecanismos especiais da ONU façam um monitoramento e reforcem o acompanhamento sobre o comportamento do governo de Jair Bolsonaro de realizar um desmonte dos instrumentos de Justiça, Verdade e Memória no país.

No primeiro discurso realizado pela OAB no Conselho de Direitos Humanos da ONU, a entidade fez questão de denunciar as ameaças que pairam sobre "o frágil processo de redemocratização" no Brasil e solicitar que os relatores da instituição internacional redobrem a atenção com o País, diante dos acontecimentos dos últimos meses e das repetidas declarações de Bolsonaro a favor de ditaduras sul-americanas.

A iniciativa da OAB teve o apoio do Instituto Vladimir Herzog. As entidades ainda mandaram um comunicado às Nações Unidas para denunciar as medidas adotadas pelo governo e pedindo ações.

A intervenção da OAB ocorre um dia depois que o governo brasileiro se recusou a responder se considera que houve um golpe de estado em 1964, num evento na ONU. Nesta quarta-feira, o governo voltou a se recusar a responder sobre os comentários elogiosos de Bolsonaro a ditadores no Cone Sul.

"As políticas de justiça de transição estão sendo desmanteladas, seja por subfinanciamento ou pela substituição de funcionários por membros que não têm experiência ou afinidade com o tema e que, às vezes, minam o sofrimento dos sobreviventes e as atrocidades cometidas durante a ditadura", disse na ONU o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Hélio Leitão.

"Além disso, o atual governo do Brasil tem repetidamente insistido em mudar a narrativa sobre as atrocidades cometidas durante a última ditadura, inclusive instruindo os militares a comemorar o golpe de Estado de 31 de março de 1964", apontou.

"Os altos tribunais brasileiros validaram esse ato presidencial sem levar em conta qualquer padrão internacional", destacou, numa reunião com os relatores da ONU para o Direito à Verdade e para Desaparecimentos.

"Pedimos que seus mandatos redobrem a atenção para esse grave retrocesso institucional no Brasil, que ameaça, em sua totalidade, nosso ainda frágil processo de redemocratização", disse Leitão.

Diante da ONU, a OAB indicou que "desde sua redemocratização, o Estado brasileiro ainda tem uma importante dívida social a enfrentar no que diz respeito à justiça de transição, com 434 pessoas entre os mortos e desaparecidos e o genocídio de pelo menos 8.350 povos indígenas durante a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985".

Evento, não Golpe

Diante da denúncia, o governo brasileiro pediu às Nações Unidas um direito de resposta. Em seu discurso diante do Conselho da ONU, o Itamaraty voltou a repetir o mantra do presidente Bolsonaro que não houve uma instrução para comemorar a data de 31 de março de 1964. Mas para relembra-la. A instrução tampouco serviria para "justificar violações de direitos humanos".

O ato de Bolsonaro, segundo o governo, foi realizado dentro das regras. "Liberdade de pensamento é fundamental de qualquer democracia", disse a delegação. "Saudamos o debate público sobre os eventos de 1964", afirmou. A frase, porém, é interpretada na ONU como justamente uma tentativa de se reabrir o debate e relativizar a existência de um regime militar.

O governo também nega que as mudanças nos mecanismos de Justiça e Memória no Brasil tenham objetivos políticos. "Mudanças em composição é consequência natural de mudança democrática de governo", disse a delegação. "O Brasil reafirma seu compromisso com a democracia, estado de direito e direitos humanos", completou.

Fabian Salvioli, relator da ONU para o Direito à Verdade, não citou o Brasil textualmente em seu discurso. Mas fez um alerta que foi interpretado por diplomatas, ongs e entidades como um recado ao governo brasileiro.

O relator apontou que o discurso de autoridades de questionar o direito de vítimas à reparação é uma forma de tentar colocar a população contra essas pessoas. Uma das maneiras de desmontar a legitimidade dessas vítimas, segundo ele, é a de apontar como elas estariam se aproveitando do dinheiro do estado.

"É um insulto dizer que vitimas estão em busca de dinheiro", atacou o relator. Para ele, a reparação pelos abusos "é um direito". O UOL revelou nesta semana que o pedido do relator para visitar o Brasil tem sido ignorado pelo governo de Bolsonaro. "Estou esperando respostas positivas neste sentido", disse Salvioli.

Bernard Duhaime, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre desaparecimentos forçados, lembrou da Operação Condor na América do Sul. Para ele, o "silêncio aprovador" da parte de alguns países não pode ser aceito.

 

Bachelet

O representante da OAB que foi até a ONU ainda aproveitou sua passagem por Genebra para, em uma conversa com Michelle Bachelet, prestar a solidariedade da entidade brasileira com a chilena. A alta comissária da ONU para Direitos Humanos foi alvo de ataques por parte do presidente brasileiro, que fez questão de elogiar o regime de Augusto Pinochet e citar a morte do pai da representante da ONU. Bachelet foi detida e torturada.

Na OAB, o comportamento de Bolsonaro foi interpretado como sendo similar ao que o presidente havia adotado contra o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Seu pai foi vítima da Ditadura e Bolsonaro, num comentário no mês passado, insinuou que ele teria sido morto por seus próprios companheiros de resistência.

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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