Governo se recusa a reconhecer na ONU a existência do Golpe de 64
Jamil Chade
10/09/2019 12h32
Sede da ONU, em Genebra. Foto: Jamil Chade
Relator da ONU fala em "volta à Idade Média" e OAB diz que postura do Itamaraty foi "último prego" nas políticas de Memória e Verdade. Governo tem ignorado pedido de relator da ONU para visitar o Brasil.
GENEBRA – O governo de Jair Bolsonaro se recusou a reconhecer na ONU a existência de um golpe de estado em 1964 no Brasil, no primeiro gesto público desta natureza no fórum internacional desde a redemocratização.
Num evento realizado pela OAB, relatores internacionais e entidades, o Itamaraty também evitou usar o termo "regime militar" e insistiu em falar de "eventos entre 1964 e 1985".
A intervenção foi feito nesta terça-feira, num encontro realizado pela OAB, Instituto Herzog e que contou com a presença de relatores internacionais em Genebra. O grupo, dentro da sede das Nações Unidas, denunciava de forma inédita o desmonte dos mecanismos de Justiça, Memória e Verdade por parte do governo de Bolsonaro.
Brasília não mandou nem sequer sua embaixadora na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, ao evento. A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, está na Hungria. Mas não se deu o trabalho de fazer a viagem até Genebra, poucas horas de vôo da Suíça.
Em nome do Itamaraty, um diplomata declarou que o governo "saúda o debate público sobre os eventos entre 1964 e 1985".
Uma jornalista mexicana, então, pediu a palavra e questionou o governo com uma pergunta direta: houve ou não houve golpe?
Uma vez mais, o diplomata evitou confirmar a existência do golpe e apenas explicou que já enviou em abril uma carta às Nações Unidas com a posição do governo brasileiro. Nela, o Planalto insiste que os "eventos" de 64 foram "legítimos" e que faziam parte da luta contra o comunismo.
"O presidente reafirmou em várias ocasiões que não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo que contou com o apoio do Congresso e do Judiciário, bem como a maioria da população. As principais agências de notícias nacionais da época pediram uma intervenção militar para enfrentar a ameaça crescente da agitação comunista no país", diz a carta.
"Já enviamos uma correspondência ao relator da ONU", disse a delegação brasileira nesta terça-feira. "O importante é recordar os eventos e ter um debate público", insistiu o diplomata, em resposta à jornalista estrangeira. "O que faltou foi um debate publico mais amplo e agora está ocorrendo em nosso país", completou.
Essa é a primeira vez que o Brasil adota tal comportamento em um evento público dentro da sede da ONU. A posição do governo ocorre dias depois que Bolsonaro teceu elogias ao ditador Augusto Pinochet e depois de seu filho, Carlos Bolsonaro, insinuar nas redes sociais que as "vias democráticas" não estariam dando os resultados desejados ao país.
Em seu discurso em Genebra, o diplomata insistiu que o Brasil "não está numa ditadura pelo voto" e que o presidente foi eleito democraticamente. Ele também garantiu que o estado busca "manter seu compromisso com a democracia".
O representante do Itamaraty insistiu que a recomendação de Bolsonaro aos militares no dia 31 de março não foi para "celebrar". Mas sim "recordar" o acontecimento. Segundo ele, tal ato não buscou justificar violações de direitos humanos. "Mas sim abrir um debate mais amplo sobre esse período".
O governo também se recusou a aceitar que há um desmonte das instituições de Memória. "Não estamos virando as costas para esses temas", garantiu, lembrando que a crise econômica foi o motivo para a retirada de fundos.
Constrangimento
Sua fala gerou um constrangimento entre os participantes e repercutiu, segundo o UOL apurou, até mesmo em Brasília. Glenda Mezarobba, representante do Instituto Vladimir Herzog, pediu a palavra e respondeu à jornalista mexicana. "Sim, houve um golpe de estado em 1964", declarou.
Enquanto pessoas na sala balançavam a cabeça diante da resposta do governo, o relator especial da ONU para a Promoção da Verdade, Justiça e Reparação, Fabián Salvioli, fez um alerta: "o passado sempre volta se não for abordado de forma correta". "Precisamos abordar seriamente e isso significa cuidar das vítimas", declarou. Para ele, a atenção aos direitos humanos "é o único caminho possível". "Caso contrário, em cem anos vamos estar aqui", alertou.
Durante o evento, que ocorreu às margens do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Salvioli lamentou a onda "negacionista" e lembrou da troca de carta entre seu escritório e o governo brasileiro, em abril. "Lamento que, no lugar de gerar uma reflexão positiva, a resposta foi insistir num sério erro", disse. "É um erro ir contra assuntos universalmente aceitos, como o repudio à tortura. Isso é universal. Dar voltas a essa posição é voltar à Idade Média, e isso é um problema", atacou o relator.
O UOL revelou que Salvioli fez um pedido para realizar uma missão ao Brasil, justamente para investigar a situação dos mecanismos e a resposta do estado diante da Ditadura. O governo, porém, tem ignorado seu pedido.
Glenda, diante da postura do governo brasileiro, fez um apelo público para que o Planalto permita a viagem do relator. Segundo ela, o governo federal está "virando as costas para as graves violações de direitos humanos" e lembra que foi eleito um presidente que "faz apologia à violência e defende torturadores".
José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns, se disse "indignado" diante da postura do presidente Bolsonaro de fazer "apologia da tortura". "Precisamos tentar salvar a democracia brasileira", disse. Segundo ele, os mecanismos de Justiça e Memória "estão sendo boicotados pelo atual regime político brasileiro", "Nesse momento, estamos vivendo um clima de medo, um clima de autoritarismo. Estou temendo que estejamos alcançando a ditadura pelo voto", alertou.
Helio Leitão, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, não escondia sua indignação. "Esse negacionismo é motivo de muita preocupação", disse ao UOL, ao terminar o evento. "O que ocorreu hoje aqui é um grave indicativo de que a atual política busca legitimar o golpe de 64. Isso é uma guinada na política externa brasileira e isso crava o último prego nas políticas de verdade e memória do Brasil", afirmou.
Em sua avaliação, ao se recusar a reconhecer que o Golpe existiu, o governo está fomentando a violência. "Isso é a promoção do extermínio da diferença. A consciência democrática pressupõe a valorização das diferenças. No momento que tenho, partindo do Planalto, uma sinalização inequívoca de legitimação do Golpe Militar e ruptura democrática, o que se sinaliza é uma política de intolerância. Não é por acaso que vemos uma alta na violência da polícia. Isso fomenta mais ódio e violência", disse.
Segundo ele, as sinalizações do Planalto estão sendo "muito bem compreendidas pelos grupos reaccionários da sociedade e se traduz em violência".
Em seu discurso, Leitão alertou que as "políticas de justiça de transição do Brasil foram desmanteladas nos últimos anos, seja por meio de fundos insuficientes ou a substituição de membros especializados por membros que não tem nem experiência e nem afinidade com o assunto".
"O governo brasileiro tem insistido reiteradamente numa mudança de narrativa inquietaste sobre as atrocidades cometidas durante a última ditadura, incluindo a instrução aos militares para comemorar o golpe de 31 de março de 1964", disse.
Leitão destacou o empecilho que representa a Lei de Anistia. "Isso levou à impunidade de vários crimes cometidos pelo estado durante a ditadura", disse. "Em outras palavras, gera uma instancia de auto-anistia, frente aos agentes do estado que claramente é contrair aos padrões da ONU", afirmou.
Pedido de Desculpas
Para o relator da ONU, só existe reconciliação entre as vítimas e o estado quando houve um pedido oficial de desculpas pelo crime. Mas ele lamenta que esse não tem sido o caminho. "Se no lugar de pedir desculpas se nega os fatos e se questiona o trabalho da Comissão da Verdade, então as vitimas voltam a ser vítimas. E isso é inaceitável", declarou.
Para ele, retroceder no reconhecimento dos crimes da ditadura "não é juridicamente possível e nem eticamente válido". Isso não é aceito pela comunidade internacional que, depois de uma transição, se retroceda", disse.
Ao concluir sua fala, o relator da ONU fez um alerta: não há paz legítima em um país se a Verdade e a Justiça forem negadas. "Uma sociedade escolhe. Mas os governos são os que propõe os valores. As vezes, temos que escolher entre a humilhação e negação ou a Verdade e Justiça, e isso é responsabilidade de todos", completou.
Antonia Urrejola, representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também destacou como, ao longo dos anos, o Brasil fez um esforço muito importante pelo direito à Verdade e reparação. Mas alertou que o debate "nunca foi da sociedade" e se limitou às vítimas e aos familiares. "Minha sensação é de que houve um debate de grupos. Não um debate de país", lamentou.
A representante relatou como, em novembro, liderou uma missão da Comissão ao Brasil e descobriu como o país "não conseguiu abordar e resolver suas dívidas históricas".
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)