Ao defender ditadura chilena, Bolsonaro sabota campanha do Brasil na ONU
Jamil Chade
04/09/2019 14h25
Reunião entre Bachelet e governos não contou com a presença da embaixadora do Brasil, depois dos ataques de Bolsonaro contra a chilena. (Jamil Chade/UOL)
Em choque, diplomatas questionam candidatura do país para fazer parte do Conselho de Direitos Humanos.
GENEBRA – Os comentários do presidente Jair Bolsonaro sobre o pai de Michelle Bachelet, morto pelo regime de Augusto Pinochet, e sua apologia ao golpe de 1973 em Santiago foram recebidos na ONU com palavras como "vergonha" e "inconcebível".
Mas, além de uma condenação generalizada, os comentários de Bolsonaro apoiando a ditadura chilena aprofundaram o desgaste no momento em que o Brasil precisa de apoio para eleição a uma vaga no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
A votação é o primeiro grande teste da popularidade de Bolsonaro, que ainda neste mês fará seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Ações do presidente contrariam discurso diplomático
A campanha que o Brasil faz nos bastidores recebeu um duro golpe nesta quarta-feira. Respondendo a uma pergunta do UOL numa coletiva de imprensa em Genebra, Bachelet criticou a apologia à ditadura por Bolsonaro, a violência policial e alertou que o espaço democrático está sendo reduzido.
Entre diplomatas e observadores na ONU, os comentários contra Bolsonaro são considerados como um ponto problemático para as pretensões do Itamaraty de convencer a comunidade internacional de que está comprometido em defender a democracia e as liberdades no país.
Ao longo dos últimos meses, o governo Bolsonaro adotou um tom nos fóruns internacionais de que não existem riscos para a democracia em sua gestão.
O tom usado por Bachelet revela que Bolsonaro não tem conseguido convencer a comunidade internacional. Tradicionalmente contidos, os altos representantes dos organismos internacionais evitam entrar em choque com governos.
"Difícil votar pelo Brasil"
Mas o que já era um problema para o Brasil se transformou em crise. Bolsonaro, seu filho e assessores foram às redes sociais para atacar Bachelet. Se uma resposta era considerado como legítima, a apologia que foi feita ao regime de Augusto Pinochet e a referência ao assassinato do pai da alta comissária pela ditadura criaram um sentimento de inconformidade nos corredores da entidade.
"Não. Ele não escreveu isso!?", comentou um embaixador ao ler os ataques do brasileiro. Um diplomata europeu já sabia do incidente. "Vocês não tem vergonha?", questionou. Uma outra ainda constatou: "Não está fácil ser brasileiro hoje". "Nojo" era também a palavra que circulava entre diplomatas de países democráticos.
Observadores indicaram ao UOL que o confronto entre Bolsonaro e Bachelet pode criar um atrito perigoso, às vésperas das eleições na ONU. "Vai ficando cada vez mais difícil votar pelo Brasil", disse outro negociador.
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O Grupo de Lima, países latino-americanos que apoiam a queda de Maduro, afirmou que votará pelo Brasil. Mas o constrangimento entre outros países ocidentais é cada vez maior. Negociadores admitem que, ironicamente, o Brasil tem um discurso de proteção aos valores ocidentais contra a ameaça ao cristianismo. Mas tem sido obrigado a buscar votos de regimes autocráticos árabes e asiáticos, além de ditaduras africanas, para garantir os votos necessários.
Perder a eleição é uma tarefa difícil. Para as duas vagas para o Conselho, só existem dois candidatos: Brasil e Venezuela. Mas o número de votos precisa chegar a 97 e não são poucos os governos que se lembram como a Rússia não chegou a esse número ao tentar ser eleito, há poucos anos. A derrota foi um recado a Vladimir Putin e sua invasão do leste da Ucrânia.
Coly Seck, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, afirmou que é contra a exclusão de um país do órgão por conta de sua situação. "Se critérios fossem estabelecidos, não teria nenhum país no Conselho", disse. Segundo ele, apesar das violações de direitos humanos por parte de um governo, é preferível que ele esteja dentro do Conselho, justamente para ser incentivado a mudar.
Diplomacia brasileira adota discrição
Horas depois do incidente, Bachelet manteria a primeira reunião com embaixadores e governos depois das férias do verão europeu e já preparando os trabalhos para a sessão do Conselho de Direitos Humanos, que começa na próxima semana.
O UOL foi o único meio de comunicação no encontro e constatou que a delegação brasileira, porém, não foi representada pela chefe da missão, a embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo. No seu lugar, uma diplomata se limitava a tomar notas, enquanto dezenas de países tomavam a palavra para falar.
Enquanto o encontro ocorria, diplomatas recebiam e sussurravam comentários sobre os ataques de Bolsonaro contra a alta comissária.
Ao terminar o encontro, num elevador, três diplomatas latino-americanos de países que se comprometeram a votar pelo Brasil comentavam a situação."Como é que vamos votar por país assim? Meu Deus", lamentou um deles, sem saber da presença da reportagem no mesmo elevador.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)