Relator da ONU cobra explicações de Bolsonaro sobre Ditadura
Jamil Chade
13/08/2019 08h00
Sede da ONU, em Genebra. Foto: Jamil Chade
O relator especial da ONU para a promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Fabián Salvioli, cobrou explicações do presidente Jair Bolsonaro por conta de suas declarações sobre o pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e por seu posicionamento sobre o regime militar.
A maneira pela qual Bolsonaro vem fazendo pronunciamento sobre a ditadura no Brasil tem criado um profundo mal-estar entre diplomatas brasileiros no exterior e dentro da ONU, inclusive depois de o presidente elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por sequestro e tortura durante a ditadura. Para Bolsonaro, ele é um "herói nacional" e recebeu a viúva do militar, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra, para um "almoço de cortesia" no Palácio do Planalto.
Agora, numa carta confidencial, o especialista da ONU questionou a atitude do governo e pediu explicações sobre o posicionamento de Bolsonaro.
Há duas semanas, o presidente disse que poderia "contar a verdade" sobre como o pai de Santa Cruz desapareceu na ditadura militar. O atual presidente da OAB é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, integrante do grupo Ação Popular (AP), organização contrária ao regime militar. Bolsonaro insinuaria que Fernando teria sido morto por seus próprios companheiros.
"Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade", disse Bolsonaro. Depois de ser preso em 1974, ele nunca mais seria visto. Num dos relatos, ex-delegado do Dops Cláudio Guerra explicou que o corpo de Fernando foi incinerado num forno de uma usina de açúcar.
"Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", diss em coletiva de imprensa.
Diante dos comentários do presidente, familiares de mortos e desaparecidos políticos ainda pediram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que "o Estado brasileiro preste esclarecimentos sobre as circunstâncias do desaparecimento e localização dos restos mortais de Fernando e que o Estado apresente todas as informações ainda não reveladas sobre mortes e desaparecimentos políticos da ditadura que estejam em poder dos seus agentes".
Na ONU, essa é a segunda vez em apenas cinco meses que o relator é obrigado a enviar uma carta confidencial ao Brasil por conta da forma pela qual Bolsonaro lida com o passado autoritário do país.
No início do ano, depois que Bolsonaro sugeriu que o Golpe de 31 de março fosse comemorado, Salviolli chegou a qualificar a iniciativa do presidente de "imoral".
"O Brasil deve reconsiderar planos para comemorar o aniversário de um golpe militar que resultou em graves violações de direitos humanos por duas décadas", disse o comunicado da relatoria da ONU.
Salvioli confirmou por telefone ao blog que enviou uma carta ao governo brasileiro, solicitando que a comemoração seja reconsiderada.A reação da ONU ocorreu depois que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladmir Herzog denunciaram Bolsonaro (PSL) pela "tentativa de modificar a narrativa do golpe de estado de 31 de março de 1964 no Brasil.
Resposta
A resposta do governo Bolsonaro também foi alvo de muita polêmica e surpresa dentro da ONU. Numa carta enviada em abril, o Itamaraty reforçava seu argumento de que não houve golpe de estado em 31 de março de 1964 e o que ocorreu foi "legítimo".
Dentro da entidade, o conteúdo da resposta foi recebido com constrangimento e, mesmo entre os diplomatas brasileiros, a versão entregue foi considerada como "chocante" pela maneira ofensiva.
Num dos trechos, a carta chega a falar em "repúdio", termo considerado como dos mais fortes na diplomacia.
A resposta apontou que o presidente está "convencido" de que é necessário "colocar em perspectiva" a data de 1964 e que quer um "debate público" sobre os fatos. A comemoração sugerida, portanto, ocorreu respeitando a Constituição.
"O presidente reafirmou em várias ocasiões que não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo", diz a carta, que ainda cita o apoio do Congresso e do Judiciário aos fatos em 1964. Segundo o governo, houve ainda o apoio da maioria da população na tomada de poder.
Nenhuma referência, porém, é feita às vítimas e a carta denomina os movimentos de esquerda no Brasil de "terroristas". O texto ainda insiste que foram os militares que conseguiram evitar o comunismo no país.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)