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A agonia de uma democracia

Jamil Chade

29/07/2019 22h12

 

Uma democracia sem o estado de direito e legitimidade é uma farsa. Ela pode até dizer oficialmente que existe e que, a cada quatro anos, as urnas estão recebendo votos. Mas ela não deixa de ser uma farsa, assim como é uma fraude tal palavra no nome oficial de tantas ditaduras.

Hoje, o que estamos presenciando no Brasil, ao vivo pelas antenas de TV, nos gabinetes e em "lives", é o desmonte desses dois pilares do sistema político – o estado de direito e a legitimidade. Em seu comando, temos um presidente que abandonou o rito do cargo e se deu o direito de atacar minorias, promover o ódio, ignorar a separação dos poderes e flertar orgulhosamente com o nepotismo.

Um estado de direito é corroído sempre que um sujeito dá uma embaixada ao filho, transporta parentes para uma festa privada em um helicóptero do estado e vende a ideia de que tem a moral e a ética ao seu lado.

Um estado de direito é bombardeado quando um sujeito propõe que o garimpo seja autorizado em terras indígenas e, ao mesmo tempo, flexibiliza o porte de armas, transformando regiões inteiras em vácuos profundos para a Justiça.

O estado de direito é minado sempre que um sujeito não sabe onde está a fronteira entre o Judiciário e seu escritório. Quando esse sujeito sugere a prisão para um jornalista, na esperança de intimidar toda a imprensa.

Um presidente tem sua legitimidade colocada em questão quando tem a crueldade de dizer que sabe o que ocorreu com o corpo de um desaparecido por uma ditadura perversa.

Um sujeito tem seu papel questionado quando cancela o encontro que tinha marcado com o chanceler de um importante parceiro comercial para ir cortar o cabelo. Ao vivo. Isso tudo para não ser obrigado a ouvir críticas, como uma criança que apenas joga se as suas regras e seus desejos prevalecerem.

Um sujeito que, aos olhos do mundo, vê sua legitimidade em franco desmoronamento quando ignora os apelos pela proteção da floresta e corta 95% dos recursos a certos departamentos de conservação. Um presidente cuja legitimidade é desgastada quando manda censurar dados científicos que não o agradam.

Desmontadas em uma velocidade surpreendente, instituições se deparam com um grupo no poder que não hesita em colocar nas redes sociais imagens de violência e aplaudi-las de pé.

Ao debochar de minorias, da imprensa ou de ativistas de direitos humanos, o governo dá claras demonstrações de que não está disposto a seguir algumas das bases da democracia, entre elas o respeito e o reconhecimento de que a oposição existe e é legítima.

Enquanto parte da sociedade se paralisa diante da sensação de que os pilares de sustento começam a se mexer, um exército de seguidores cumpre ordens de atacar a qualquer um que discorde de seu líder e gargalham junto com seu mito, zombando da própria democracia.

Hoje, o debate não é sobre ideias, nem muito menos sobre projetos. Estamos diante de uma ameaça ao estado de direito, uma agonia da democracia. E num momento de crise profunda, seja qual for a bandeira, fechar os olhos para esse desmoronamento é uma cumplicidade criminosa.

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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