Brasil se alia a islâmicos em temas de sexo e família na ONU
Jamil Chade
11/07/2019 10h20
Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, se reúne nesta semana para tratar de crimes e violações
Governo apoiou ideia de sauditas e do Bahrein de dar maior consideração aos pais e guardiões ao se tratar de educação para combater ao casamento forçado de meninas. Itamaraty também apoiou ideia do Paquistão de eliminar educação sexual de resolução da ONU e ainda defendeu proposta de declarar que não existem direitos sexuais e reprodutivos.
GENEBRA – O discurso oficial é de que o novo governo brasileiro tem a missão de defender os valores ocidentais e até lutar pela preservação do cristianismo. Mas, nas votações na ONU, o governo descobriu que é um dos poucos no mundo a se associar às ideias ultraconservadoras do mundo islâmico.
Nesta quinta-feira, depois de semanas de debates, as resoluções sobre como lidar com abusos foram à votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Ao longo do dia, algumas das propostas mais conservadoras do mundo islâmico acabaram recebendo o apoio inesperado do Brasil.
O governo, por exemplo, votou a favor de uma proposta do governo do Paquistão e de outros islâmicos, sugerindo retirar de uma resolução na ONU o termo "educação sexual" em projetos de combate à violência contra a mulher.
Entre as propostas de países árabes apoiadas pelo Itamaraty estavam a ideia de considerar a posição dos pais em questões sobre a educação para evitar o casamento forçado de meninas, além de rejeitar a ideia da existência do direito à saúde sexual e outros.
Nas últimas semanas, o governo brasileiro mudou radicalmente sua postura na ONU, tentando vetar termos que eram consenso internacional por 25 anos. Com base em avaliações religiosas, o Brasil passou a rejeitar termos como direitos sexuais, igualdade de gênero e outras palavras que possam contradizer a uma visão religiosa de reprodução, homens e mulheres.
Os pedidos brasileiros foram rejeitados pelos autores das propostas e o Itamaraty desistiu de se opor à resolução.
Ainda assim, a explicação do governo é de que o termo "gênero" não faz parte da Constituição, que apenas usa os termos "igualdade entre homens e mulheres". Quanto aos direitos sexuais, o temor é de que o termo abra brechas para uma avaliação positiva do aborto.
Um dos textos submetidos se referecia à violência contra a mulher. Ao explicar a resolução, o governo do México indicou que, entre os pontos fundamentais, os governos apontam que a liberdade das mulheres passa necessariamente por sua "liberdade sexual" e que sua proteção passava por garantir a educação sexual nas escolas. Também se estabelece que as mulheres tem o direito de "controlar e escolher sua sexualidade" e que "nenhuma autonomia física deve ser limitada".
O governo brasileiro optou pelo silêncio e não se opôs na hora da aprovação. Mas surpreendeu ao se aliar a alguns dos governos mais conservadores do mundo.
Educação sexual
O governo do Paquistão, em nome da Organização para a Cooperação Islâmica, sugeriu modificar o texto, apresentando uma emenda para retirar referências à necessidade de dar educação sexual às meninas. "Pode ser prejudicial para as meninas", alertou a delegação de Islamabad.
Na emenda, os islâmicos sugeriam eliminar do texto a frase que visa "garantir acesso universal à educação sexual compreensiva com base em evidências" às meninas e crianças.
Sem dar uma explicação, o Brasil votou a favor da proposta do Paquistão. Mas como 25 países votaram contra a postura dos islâmicos, a emenda não passou e a educação sexual ficou mantida no texto.
O voto brasileiro se contrasta com declarações da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves. Em entrevista ao UOL, ainda no final de 2018, declarou ser favorável à educação sexual nas escolas.
O governo de Bangladesh, que também votou da mesma forma que o Brasil, alertou que essa educação abriria brechas para "promiscuidade e abortos".
Países ocidentais se recusaram a aceitar as emendas e conseguiram derruba-las. A Austrália, por exemplo, insistiu na necessidade de aprovar a resolução, inclusive com referências sobre educação sexual. O governo do Peru também saiu ao apoio da ideia de direitos sexuais e reprodutivos. "Isso foi reconhecido há mais de 25 anos", alertou Lima.
Uruguai e outros países também insistiram que órgãos internacionais sugerem a necessidade de educação sexual.
O governo do Egito também sugeriu uma mudança. O Cairo alerta que não "há direitos sexuais e reprodutivos em documentos internacionais". A emenda tampouco passou. Enquanto isso, o governo da Rússia também sugeriu uma emenda e pediu que meninas e mulheres não sejam colocadas em um mesmo patamar.
De acordo com o governo austríaco, documentos já aprovados por anos indicaram que "direitos sexuais e reprodutivos fazem parte integral de direito à saúde".
A resolução acabou sendo aprovada sem voto. Mas os governos da Arábia Saudita, Afeganistão, Nigeria, Bangladesh, Catar, Egito e Paquistão também se afastaram de trechos da resolução.
Casamento Forçado
Numa outra resolução proposta pela Holanda e mais de 70 países sobre casamento forçado de menores, o Brasil uma vez mais surpreendeu.
O texto recomendava ações e estabelecia direitos. Ao explicar a resolução, os governos alertaram que 12 milhões meninas são obrigadas a se casar antes dos 18 anos de idade, com impacto para seus direitos e até educação.
O governo do Egito, porém, sugeriu uma emenda, pedindo que o texto suprimisse a ideia de que existe "direito à saúde sexual e reprodutiva".
O Brasil votou a favor da proposta do Egito, uma vez mais sem dar explicações. Com o Itamaraty ainda votaram países como Bahrein, Somália e Catar.
Mas a emenda foi derrubada, depois que 26 países votaram contra, entre eles todos os europeus. O governo do México lembrou as dezenas de resoluções e documentos internacionais que reconhecem a existência do direito à saúde sexual. A mesma postura foi adotada pela Croácia.
Instantes depois, o Brasil uma vez mais surpreendeu ao dar seu voto, uma vez mais, às propostas de grupos ultraconservadores do mundo islâmico.
Bahrein, sauditas e outros islâmicos pediram que o texto sobre casamento infantil fosse emendado para levar em consideração o papel de "guardiões e país" de meninas em sua educação.
Segundo esses governos, existiria "o direito dos pais" e eles precisariam ser levados em conta ao se tratar desse assunto de educação para evitar o casamentos forçados.
O Brasil apoiou os árabes. Mas a emenda uma vez mais caiu, diante da oposição do Ocidente.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)