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Luta contra homofobia "some" de campanha do Brasil para eleição na ONU

Jamil Chade

06/07/2019 04h00

Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, se reúne nesta semana para tratar de crimes e violações

GENEBRA – O governo brasileiro não incluiu explicitamente a luta contra a homofobia, o combate à discriminação contra homossexuais ou qualquer referência a grupos LGBTs em sua campanha para ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), com duração de três anos.

A eleição ocorre em outubro e, num telegrama interno enviado pelo Itamaraty no dia 5 de junho, a cúpula da diplomacia brasileira listou as prioridades do governo para os próximos três anos no campo dos direitos humanos.

Trata-se, no fundo, de uma espécie de "plano de governo" e de promessas de campanha para convencer os demais países a dar seus votos ao Brasil.

Mas, apesar de o documento trazer cercas de 20 áreas de atuação, não há em todo o texto nenhuma referência explícita nem a grupos LGBTs, ao combate contra a homofobia nem à luta contra a discriminação com base na orientação sexual.

A violência contra homossexuais no Brasil é uma das mais pronunciadas do mundo. O país registrou 445 casos de assassinatos de homossexuais em 2017, segundo o levantamento do Grupo Gay da Bahia.

Mas nem assim a situação foi considerada como suficiente para merecer uma menção explícita no programa do Brasil para os próximos três anos.

A ausência do termo no texto se contrasta com uma tradição já adotada pelo Itamaraty nos últimos 20 anos. Em 2003, por exemplo, o Brasil inovou ao ser o primeiro país do mundo a propor uma resolução que estabelecia que a discriminação com base em orientação sexual deveria ser combatida.

Ao longo de anos, o Brasil ainda passou a ser referência nessa questão e sempre convidado por governos progressistas da Escandinávia para liderar debates sobre como responder a ameaças sofridas por gays.

Agora, a única eventual referência poderia ser imaginada num trecho sobre "pessoas em situação de vulnerabilidade". "A política nacional de direitos humanos prioriza a defesa e a proteção dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade", diz o telegrama. Ele, porém, não define quem seriam as pessoas em situação de vulnerabilidade nem dá outros detalhes.

"Durante o próximo mandato [na ONU], o Brasil reitera a determinação de combater todas as formas de violência e discriminação, em especial no que diz respeito a grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade", afirma.

"Nós nos comprometemos a fortalecer e adotar medidas concretas, tanto internamente como internacionalmente, com objetivo de promover e respeitar os princípios da igualdade e da não discriminação e combater todas as formas de violência", completou.

Em outro trecho, uma vez mais o governo é vago e evita a questão da orientação sexual. "O Brasil está determinado a promover, proteger e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, religião ou quaisquer outras formas de discriminação", diz.

O documento ainda aponta que, se eleito, o Brasil "dedicará especial atenção a temas relativos ao combate à violência e à discriminação que afetam pessoas em situação de vulnerabilidade, qualquer que seja a motivação". Uma vez mais, porém, não explicita a questão de homossexuais nem de gênero, termo que desde a semana passada passou a ser vetado pela diplomacia.

Na circular número 110919, o governo explica que os compromissos do Estado brasileiro para o próximo triênio "são fruto de coordenação do Itamaraty com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e foram objeto de consultas internas e validação nas diversas secretarias daquele ministério, cujas sugestões e propostas foram incorporadas".

"O texto reflete e incorpora as diretrizes de direitos humanos do governo do presidente Jair Bolsonaro", explica.

Para Gustavo Coutinho, secretário de Política sobre Drogas da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), a posição confirma uma tendência. "A postura que o Brasil tem dito na ONU recentemente expõe a política de perseguição às discussões de gênero e à população LGBT empregada pelo governo", disse.

Ele cita ainda a extinção da participação das LGBTs no Conselho Nacional de Combate à Discriminação, da Emenda Constitucional 95 e outras iniciativas.

"Invisibilizar nossa luta por igualdade de direitos sob pautas mais gerais não atendem nossas necessidades e mostram a conivência com o aprofundamento da violência contra nós",disse.

 

 

Família

Se homossexuais não são citados no texto, o governo deixa claro seu foco pela família. "O governo defende o fortalecimento dos vínculos familiares, sob o enfoque dos direitos humanos", diz o plano de campanha.

"Para tanto, está desenvolvendo políticas públicas transversais, que têm na família ponto focal da atuação do Estado. No âmbito do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil compromete-se a apoiar iniciativas que contribuam para fortalecer as estruturas e relações familiares, levando em especial consideração as diferentes circunstâncias socioculturais e econômicas das famílias, sobretudo no que respeita às famílias em situação de vulnerabilidade", disse.

Eis os demais pontos da campanha do Brasil:

Direitos da mulher

O governo reconhece o papel central das mulheres para assegurar o usufruto pleno dos direitos humanos. Durante o próximo mandato, o Brasil deverá persistir com iniciativas concretas, no âmbito nacional e internacional, para garantir e promover os direitos humanos das mulheres e meninas. Tomará como premissa o texto constitucional brasileiro que estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.

Violência contra a mulher

No Brasil, as políticas de proteção e defesa dos direitos da mulher têm tratamento prioritário. Não pouparemos esforços no enfrentamento da discriminação e da violência contra as mulheres. Nesse contexto, o país deverá favorecer, nos planos nacional e internacional, programas e iniciativas destinadas a prevenir, punir e erradicar a discriminação e a violência contra mulheres e meninas nas esferas pública e privada, sobretudo o feminicídio e o assédio sexual.

Crianças e adolescentes

O Brasil busca assegurar a proteção integral da criança e do adolescente na prática e na lei. Implementa políticas abrangentes para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças e dos adolescentes, em condições de liberdade e dignidade. No próximo triênio, o Brasil compromete-se a continuar desenvolvendo medidas e políticas para a promoção e a proteção dos direitos das crianças, dos adolescentes e de suas famílias, para garantir seu bem-estar e o melhor interesse.

Adotará, como foco, o combate à violência, à exploração sexual e ao trabalho infantil, bem como a proteção dos direitos da criança no campo digital. Apoiará, ademais, iniciativas que tenham como objetivo reduzir a mortalidade infantil e juvenil, melhorar a situação dos jovens em conflito com a lei e proteger a criança na primeira infância.

Juventude

O governo brasileiro trabalha para que a juventude possa ter o seu devido lugar na agenda pública, com os jovens como sujeitos de direitos, por meio da promoção de sua autonomia, da valorização e promoção da participação social, política e no desenvolvimento do país, da promoção de seu bem-estar, do respeito à sua identidade e à diversidade e da promoção da vida segura e da não discriminação.

Reafirmamos nosso compromisso de implementar e promover, nacional e internacionalmente, estratégias que abordem adequadamente as questões da juventude e deem aos jovens oportunidades reais para participação plena, efetiva, construtiva e sustentável na sociedade. Ademais, ressalta-se o engajamento do governo na promoção de políticas públicas de inclusão digital, voltadas ao futuro do trabalho.

Pessoas com deficiência

As medidas de promoção e de proteção dos direitos das pessoas com deficiência têm sido intensificadas nesta administração. Inclusão é a palavra de ordem para os próximos anos e estamos empenhados em avançar de forma decidida com a inclusão nas escolas, no mercado de trabalho e a acessibilidade nas cidades.

O Brasil deverá continuar a promover e proteger os direitos das pessoas com deficiência, nos níveis nacional e internacional, de modo a assegurar a sua participação plena na sociedade de modo a tornar realidade os direitos consagrados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

O governo assegurará que as pessoas com deficiência estejam no centro de todas as decisões que os afetem.

Indígenas

O Brasil promove políticas públicas abrangentes voltadas ao desenvolvimento sustentável das populações indígenas, ao mesmo tempo em que busca garantir o acesso diferenciado aos direitos sociais e de cidadania dos povos indígenas. Seguiremos comprometidos em garantir, promover e proteger os direitos dos povos indígenas, em linha com os compromissos internacionais assumidos pelo país, bem como assegurar serviços públicos essenciais para as comunidades indígenas.

No conselho, o Brasil continuará participando das principais iniciativas sobre povos indígenas e manterá elevado nível de interlocução com os mecanismos pertinentes.

Liberdade de religião

O Brasil valoriza sua rica diversidade, resultado de séculos de interação de diferentes culturas, religiões e tradições. No período de mandato, continuaremos empenhados em apoiar, adotar, fortalecer e promover medidas que fomentem cultura de paz, tolerância e entendimento mútuo. O Brasil compromete-se a proteger e respeitar todas as expressões religiosas, inclusive a opção de não ter nenhuma religião, bem como a promover e proteger os direitos humanos de minorias nacionais, étnicas, religiosas ou linguísticas.

Racismo

O Brasil confere prioridade à implementação de programas e políticas efetivas contra a discriminação étnico-racial, a fim de assegurar o respeito do importante legado legislativo do país. Continuaremos engajados para prevenir e combater o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas correlatas de intolerância. Confirmamos nosso apoio à implementação da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024) e à negociação de uma Declaração das Nações Unidas sobre a Promoção e o Pleno Respeito dos Direitos Humanos de Afrodescendentes.

De igual forma, o governo compromete-se a ampliar a agenda de promoção e proteção dos direitos de povos e comunidades tradicionais.

Internet

O Brasil defende que os mesmos direitos offline também devem ser protegidos online. No âmbito do Conselho, estamos determinados a continuar a apoiar e promover iniciativas que contribuam para gerar confiança, proteger e respeitar todos os direitos humanos online e realizar o pleno potencial da internet.

Consideramos que a internet contribui para o desenvolvimento e a inovação. Para atingir esse objetivo, é necessário fomentar a cooperação entre os governos, a sociedade civil, o setor privado e as comunidades técnica e acadêmica.

Liberdade de expressão

O Brasil reitera o entendimento de que o exercício do direito da liberdade de opinião e expressão é pilar fundamental de uma sociedade livre e democrática. No próximo triênio, seguiremos comprometidos em promover ambiente propício ao exercício da liberdade de expressão, inclusive na internet, e a condenar todas as formas de violência associadas à expressão de opiniões.

Continuaremos apoiando iniciativas nesse sentido no âmbito do Conselho de Direitos Humanos.

Direito à privacidade

O Brasil considera que a proteção, promoção e respeito ao direito à privacidade beneficiam-se do envolvimento sustentado de todas as partes interessadas, incluindo estados, empresas, organizações internacionais e sociedade civil. No conselho, seguiremos apoiando e
implementando iniciativas que busquem respeitar e proteger o direito à privacidade, especialmente no contexto das comunicações digitais.

Continuaremos engajados nos debates sobre políticas e medidas referentes à proteção de dados pessoais e da privacidade online, a fim de prevenir e combater a coleta, o processamento, o uso ou a divulgação arbitrária ou ilegal de dados na internet que possam violar os direitos humanos.

Defensores de direitos humanos

O Brasil reitera o compromisso com a proteção dos defensores de direitos humanos, que contribuem de maneira relevante e corajosa à promoção e à proteção dos direitos humanos. No triênio que se inicia, seguiremos empenhados em apoiar e promover medidas concretas que garantam aos defensores dos direitos humanos ambiente seguro e propício para que possam realizar o seu trabalho sem obstáculos ou insegurança.

Pessoa idosa

O Brasil confere especial atenção ao crescente segmento de pessoas idosas da população brasileira, sob a ótica dos direitos humanos. Nesse contexto, o país mantém determinação de combater as várias formas de discriminação e violência contra as pessoas idosas, favorecer sua plena e efetiva participação na vida econômica, política e social, e permanece comprometido com a negociação de instrumento jurídico internacional sobre os direitos dos idosos, mantendo como tarefa prioritária a promoção de envelhecimento ativo e saudável.

Inclusão social

O governo brasileiro desenvolve políticas públicas ativas para apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade social, de modo a realizar plenamente seus direitos econômicos, sociais e culturais. Caso eleitos ao conselho, continuaremos a favorecer a implementação de iniciativas que promovam inclusão social, equidade e educação inclusiva, com vistas a promover melhor qualidade de vida e aumento do bem-estar de todos. O governo brasileiro tem como premissa básica a inclusão de todas as pessoas para não deixar ninguém para trás.

Direito à saúde

No Brasil, toda pessoa tem direito ao acesso integral, universal e gratuito ao sistema de serviço público de saúde, sem discriminação. No conselho, permaneceremos comprometidos com as iniciativas de promoção e proteção do pleno e efetivo desfrute do direito de todos ao mais alto padrão atingível de saúde física e mental, inclusive em temas como acesso a medicamentos.

Luta contra a corrupção

À luz do inegável vínculo entre corrupção e violações de direitos humanos, o Brasil considera que o combate à corrupção é consistente com medidas voltadas à realização dos direitos fundamentais. Nós nos empenharemos, portanto, a favorecer, nacional e internacionalmente, medidas e práticas para prevenir a corrupção e seu impacto no usufruto dos direitos humanos, assegurando a transparência, o acesso à informação pública, a prestação de contas, a não discriminação e a participação significativa na condução dos assuntos públicos.

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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