Governo quer incluir grupos religiosos nas resoluções da ONU
Jamil Chade
01/07/2019 10h02
A ministra Damares Alves durante fala em comissão no Senado (GERALDO MAGELA/Agência Senado)
Brasília só aceita referência a "grupos feministas" em textos se resoluções também fizerem menção a grupos religiosos. Governo ainda voltou a dizer que vai defender em todos os textos oficiais os "fatos biológicos: homem e mulher" e aproveitou até mesmo um debate sobre tráfico de armas para vetar a palavra "gênero".
GENEBRA – A guinada conservadora do Itamaraty na ONU ganhou um novo capítulo nesta segunda-feira, com o governo de Jair Bolsonaro insistindo para a inclusão do reconhecimento a grupos religiosos numa resolução para eliminar todas as formas de violência contra a mulher.
Desde a semana passada, diplomatas brasileiros receberam instruções para vetar nos textos dos documentos a serem votados na ONU uma série de termos. O mais polêmico deles foi "gênero", amplamente usado em resoluções nos últimos 25 anos.
Nesta segunda-feira, numa reunião convocada pelo Canadá para negociar o rascunho de sua resolução sobre o combate à violência contra a mulher, o Brasil fez um novo pedido: incluir o reconhecimento do papel de grupos religiosos na promoção dos direitos das mulheres e na proteção de meninas.
No jargão diplomático, o termo usado é "grupos baseados na fé".
O Brasil ainda deu uma opção: se tal inclusão não fosse aceita na resolução pelos demais países, então a sugestão era de que se retirasse do parágrafo todas as referências aos demais grupos da sociedade civil. Entre as referências que seriam eliminadas, neste caso, estaria o termo "grupos feministas".
Quem saiu em apoio ao Brasil foi o governo do Egito, um dos que lideram o grupo de estados autoritários muçulmanos e tenta impedir que textos da ONU possam ampliar direitos.
Para diplomatas latino-americanos, a iniciativa do Brasil deverá ter o apoio dos grupos islâmicos, justamente para tentar imprimir a visão dessa religião também na forma pela qual a questão da mulher é tratada.
Já outros negociadores viram a ação brasileira como uma manobra hábil para tirar do texto a referência a grupos feministas. Como dificilmente a inclusão de um parágrafo sobre grupos religiosos seria aceita, a barganha poderia terminar com a eliminação de todos os grupos, principalmente os feministas.
A resolução vai à votação em 15 dias.
Horas depois, numa outra reunião na ONU para debater outra resolução, uma vez mais o Brasil pediu a palavra para indicar que quer a inclusão do termo "grupos religiosos" em outro texto. A atitude que se repetia foi vista por governos estrangeiros como uma demonstração de que a guinada religioso do governo será ampla.
Para o Itamaraty, ou a lista de grupos da sociedade civil devem ser eliminados ou ela deve incluir grupos religiosos. Para a UE e Austrália, é importante que os nomes das entidades da sociedade civil estejam no texto, principalmente para deixar claro o posicionamento de grupos feministas.
Momentos depois, ainda no mesmo rascunho de uma resolução proposta pelo México sobre o combate à discriminação contra a mulher, mais uma vez o Brasil pediu a palavra em duas ocasiões para solicitar que organizações religiosas fossem incluídas no texto.
Dentro do governo, não há qualquer mistério sobre a influência importante de grupos evangélicos em diversos ministérios. Mas, até agora, a formulação da política externa havia sido preservada. As novas orientações revelam que, apesar de o estado ser laico, o governo Bolsonaro não hesitará em defender menções a grupos religiosos e uma visão do mundo com base em uma certa fé.
200 resoluções
Assim como já ocorreu em outras três resoluções, o Brasil voltou a pedir nesta segunda-feira aos canadenses e mexicanos que eliminassem todas as referências ao termo "gênero". A delegação brasileiro indicou que não teria como ser flexível sobre esse ponto e que iria defender a "fatos biológicos: homem e mulher".
A atenção do governo com o assunto é de tal dimensão que, num encontro sobre a negociação de uma resolução sobre tráfico de armas, o que o Itamaraty queria era a eliminação da palavra "gênero".
Numa outra reunião, o governo brasileiro indicou que, em seu entendimento", o "gênero é biológico". Imediatamente, o governo do México reagiu, insistindo que gênero é um termo já aceito de forma internacional, que faz parte de tratados e que não será flexível sobre esse ponto.
O Itamaraty ainda deu seu apoio aos russos, principalmente quando o Kremlin sugeriu que o termo "acesso universal à saúde reprodutiva e sexual" fosse eliminado. Para o Brasil, isso sugeriria o direito ao aborto.
O governo brasileiro também deu seu apoio para propostas do Egito e do Paquistão, todas elas no sentido de não aplicar o reconhecimento de direitos.
Mas o Itamaraty viu, uma vez mais, uma forte oposição por parte dos países Ocidentais. A UE, por exemplo, indicou que todas as referências a gênero deveriam permanecer, a mesma posição adotada pela Colômbia, Austrália, Israel, Uruguai e França.
O governo do México foi um dos mais contundentes na crítica ao Brasil. Segundo a delegação do país latino-americano, já existem cerca de 200 resoluções e declarações aprovadas internacionalmente com a referência à "gênero". Uma ação do Brasil para desmontar esse arcabouço significaria um retrocesso de 25 anos nos avanços da linguagem diplomática.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)