Brasil veta termo “gênero" em resoluções da ONU e cria mal-estar
Jamil Chade
27/06/2019 06h48
Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, se reúne nesta semana para tratar de crimes e violações
Arábia Saudita apoiou a nova posição do governo brasileiro. Mas aliados de Bolsonaro, como Israel e Chile, se recusaram a apoiar o país. França, escandinavos, canadenses e outros europeus insistem que o termo não pode ser eliminado.
GENEBRA – Num ato que deixou delegações estrangeiras perplexas, diplomatas brasileiros começaram a implementar nesta quinta-feira instruções do Itamaraty de vetar qualquer referência ao termo "gênero" em resoluções da ONU. Os documentos serão colocados à votação em julho. Mas já começaram a ser alvo de reuniões diplomáticas e o Brasil promete agir em todos eles.
Numa reunião para negociar uma das resoluções em Genebra, a nova posição do Brasil abriu um debate inédito com europeus, que insistiram que não iriam retirar o termo "gênero" do texto. A posição do chanceler Ernesto Araújo, ironicamente, foi apoiada por governos como o da Rússia, Paquistão e da Arábia Saudita, acusado por ongs e mesmo por governos ocidentais por seu tratamento às mulheres.
Enquanto o Brasil falava, delegações estrangeiras literalmente abriam a boca de surpresa, se olhavam de forma assustada e combinavam reações imediatas, enquanto outros suspiravam para lamentar a nova posição nacional.
Em nenhum dos encontros, porém, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, esteve presente e enviou seus secretários e representantes. Ela, no mesmo dia, acompanhava uma visita do ministro de Ciência. No total, porém, mais de 14 referências ao termo "gênero" foram vetados durante os encontros pelo governo brasileiro até agora. O número deve crescer, já que nem todos os trechos ainda foram alvo de negociações.
A primeira reunião desta quinta-feira havia sido convocada pelas delegações da Áustria, Honduras e Uganda. Na agenda, estava a resolução para tratar dos direitos humanos de pessoas deslocadas, por conta de conflitos armados ou mesmo mudanças climáticas. O temor é de que, entre essas populações, as mulheres sejam as mais afetadas.
Mas foi a posição do governo brasileiro que chamou a atenção daqueles na sala. Ao tomar a palavra, os representantes do Itamaraty indicaram que querem que o termo "gênero" fosse trocado por "igualdade entre homens e mulheres".
Na visão do governo brasileiro, gênero é uma construção social e o que deve prevalecer é a realidade biológica.
A intervenção do Brasil abriu uma discussão. O governo da Noruega pediu que o termo "gênero" fosse mantido no texto. A mesma posição foi tomada por França, Finlândia, Dinamarca e Suíça. O governo australiano ainda fez uma intervenção, apelando de forma enfática para que a linguagem do texto não fosse modificada.
Quando esse debate acabou e a presidência da reunião passou a avaliar outros trechos da resolução, uma vez mais foi o Brasil que tomou a palavra para pedir que a frase "vulnerabilidade à violência sexual e com base em gênero" fosse simplesmente eliminada do texto.
Os governos da Noruega, Suíça, França, Austrália e Canadá rapidamente pediram a palavra para insistir que não aceitariam a retirada da frase.
O mesmo padrão de debates ocorreu instantes depois, ao se debater mais um artigo da resolução. Os autores da proposta indicaram ao Brasil que aquela linguagem era a mesma que existia nas resoluções aprovadas por consenso nos anos anteriores e que se sentiriam "desconfortáveis" em mudar.
Enquanto o debate continuava, os vetos impostos pelo Brasil se ampliavam. Num outro trecho, o governo de Jair Bolsonaro pediu que o termo "violência com base em gênero" fosse trocado por "violência sexual". Dinamarca, Noruega, Guatemala, França e Panamá rejeitaram a ideia brasileira.
Saúde
A onda de vetos do Brasil não deixava passar nenhuma frase do texto em que os termos de desagrado do Itamaraty fossem identificados. Numa outra parte do projeto de resolução, o Brasil pediu a exclusão das frases "desigualdades com base em gênero" e mesmo "serviços de saúde sexual e reprodutivo".
Mais uma vez, países ocidentais defenderam a manutenção da linguagem do texto como está. Quem apoiou o Brasil, porém, foi o governo saudita.
Horas depois, numa outra reunião, o governo brasileiro voltou a se pronunciar para pedir que o termo "gênero" fosse retirado de uma outra resolução sobre o direito à educação. Uma vez mais, os países ocidentais atacaram a proposta do Itamaraty.
Contra a discriminação, mas sem gênero
No mesmo dia, em outra sala da ONU, delegações se reuniam para debater uma resolução sobre a eliminação de descriminação contra mulher, proposta pelo México. Tradicionalmente, esse é um texto que anualmente é aprovado por consenso
Uma vez mais, o Brasil inicia a desmontar o texto, vetando todos os trechos que a palavra "gênero" era mencionada. Numa das partes que gerou risos entre os demais delegados, a diplomacia brasileira solicitou o veto à frase "treinamento com base em gênero". Em seu lugar, sugeriu a frase: "o treinamento que leve em conta temas de mulheres".
Imediatamente, governos de diferentes regiões atacaram a postura do Brasil. Para o Uruguai, o que o Brasil quer eliminar é o "centro da resolução". A mesma avaliação foi feita pela UE e Austrália, enquanto a Islândia insistiu em manter o texto como está.
O Itamaraty ainda insistiu em excluir parágrafos inteiros que faziam referência a uma possibilidade de abolir a criminalização do aborto, além de outro que apontam como existia uma suposta tentativa de "impôr padrões sociais e culturais". Num outro trecho, o governo solicitou a exclusão de um parágrafo inteiro que daria a sensação de que o aborto poderia ser algo positivo. Chile, Georgia e Israel pediram a manutenção da linguagem.
Em outro trecho, a resolução indicava a necessidade de que governos tomassem medidas para impedir que barreiras criadas por religiões tivessem um impacto negativo sobre as mulheres. O Brasil também foi contra, alegando que o texto daria brecha para restrições à liberdade de religião. Para completar, ainda pediam que entidades religiosas fossem incluídas como atores sociais.
Nesse caso, Bahrein e Paquistão apoiaram o Brasil.
Ao longo da reunião, as falas do Itamaraty eram imediatamente contestadas por diferentes países, alguns deles aliados de Bolsonaro. Chile e Israel foram dois dos que tomaram a palavra em diferentes momentos para rejeitar as propostas brasileiras. Os governos da Argentina e Uruguai não pouparam suas críticas.
O veto ocorreu um dia depois que o jornal Folha de S. Paulo também revelou que diplomatas brasileiros receberam nas últimas semanas instruções do Itamaraty para que, em negociações em foros multilaterais, reiterem "o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino".
O debate vem em meio a uma ofensiva do atual governo para desfazer algumas das posições tradicionalmente tomadas pelo Brasil nos últimos 18 anos. Uma das principais delas se refere ao termo gênero, considerado dentro de parte do governo como uma "construção social".
Mas a transformação da posição do Brasil nos organismos internacionais vai além. Se por alguns meses um debate claro foi travado dentro do governo brasileiro sobre como se comportar em votos nas entidades, a consolidação da posição mais conservadora passou a vigorar nas últimas semanas. E foi amplamente notada por governos estrangeiros e ongs.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)