Recomendação de Bolsonaro sobre golpe é "imoral", denuncia relator da ONU
Jamil Chade
29/03/2019 13h36
GENEBRA – A relatoria da ONU pede que Jair Bolsonaro reconsidere sua recomendação de realizar, no dia 31 de março, uma "comemoração adequada" do golpe militar, ocorrido contra a democracia brasileira em 1964.
Num comunicado emitido nesta sexta-feira, o relator especial da ONU para a promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Fabián Salvioli, não poupou críticas ao governo. Num raro gesto, ele chegou a qualificar a iniciativa do presidente de "imoral".
"O Brasil deve reconsiderar planos para comemorar o aniversário de um golpe militar que resultou em graves violações de direitos humanos por duas décadas", disse o comunicado da relatoria da ONU.
Salvioli confirmou por telefone ao blog que enviou uma carta ao governo brasileiro, solicitando que a comemoração seja reconsiderada. Por enquanto, porém, sua carta não foi respondida.
"Tentativas de revisar a história e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo", disse. Segundo o relator, o Brasil estaria descumprindo convenções internacionais se seguir com tal postura.
A reação da ONU ocorreu depois que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Instituto Vladmir Herzog denunciaram Bolsonaro (PSL) pela "tentativa de modificar a narrativa do golpe de estado de 31 de março de 1964 no Brasil.
Internamente, a ONU já vinha acompanhando a situação no Brasil desde o começo da semana. Agora, decidiu emitir um comunicado duro em que alerta que o "período em questão no Brasil foi marcado por um regime de restrições aos direitos fundamentais e violenta repressão sistemática".
Citando a Comissão Nacional da Verdade, o relator aponta que mais de 8.000 indígenas e pelo menos 434 suspeitos de serem dissidentes políticos foram mortos ou desapareceram forçadamente. "Estima-se também que dezenas de milhares de pessoas foram arbitrariamente detidas e/ou torturadas. No entanto, uma lei de anistia promulgada pela ditadura militar impediu a responsabilização pelos abusos", indica.
"Comemorar o aniversário de um regime que trouxe tamanho sofrimento à população brasileira é imoral e inadmissível em uma sociedade baseada no estado de direito. As autoridades têm a obrigação de garantir que tais crimes horrendos nunca sejam esquecidos, distorcidos ou deixados impunes ", disse o relator.
"Quaisquer ações que possam justificar ou relevar graves violações de direitos humanos durante a ditadura reforçariam ainda mais a impunidade que os perpetradores desfrutam no Brasil, dificultariam esforços para impedir qualquer repetição de tais violações e enfraqueceriam a confiança da sociedade nas instituições públicas e no estado de direito", alertou.
O relator ainda insistiu sobre o "direito das brasileiras e brasileiros de conhecer a verdade sobre crimes hediondos do passado e as circunstâncias que conduziram a esses crimes, bem como o dever do Estado de preservar as evidências de tal violência". "Isso poderia incluir a preservação da memória coletiva desses eventos e a proteção contra argumentos revisionistas e negacionistas", disse.
Um relato preciso das violações sofridas pelas vítimas constitui parte de seu direito à reparação e satisfação. "Estou profundamente preocupado que as celebrações planejadas possam levar a um processo de revitimização para aqueles que sofreram", alertou.
Mal-estar – O mal-estar pela posição brasileira não se limita ao chefe de governo. Nos corredores, causou uma enorme surpresa o posicionamento do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, de que não considera 64 como um golpe, assim como o de militares que insistem que as Forças Armadas não se arrependem de ter tomado o poder à força por 21 anos.
A percepção é de que o governo estaria ameaçando até mesmo sua credibilidade internacional ao não reconhecer fatos históricos.
Depois de causar controvérsias por sua recomendação, Bolsonaro tentou baixar o tom na quinta-feira. "Não foi comemorar, foi rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro", disse no Clube do Exército em Brasília.
A versão é diferente daquela que o porta-voz oficial da Presidência, general Otávio do Rêgo Barros, havia indicado no início da semana. Para as Forças Armadas, a data não seria de um golpe. Mas sim de revolução.
Ainda assim, o texto que seria lido no dia 31 de Março nos quartéis aponta que "a Marinha, o Exército e a Aeronáutica reconhecem o papel desempenhado por aqueles que, ao se depararem com os desafios próprios da época, agiram conforme os anseios da Nação Brasileira". O texto ainda diz: "Mais que isso, reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História".
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)