Topo

Roma serviu para “abrir os olhos” da sociedade, diz atriz indicada ao Oscar

Jamil Chade

08/03/2019 04h00

Em entrevista exclusiva ao blog, Yalitza Aparicio diz que trabalhadoras domésticas são "mulheres invisíveis" e que continuam vivendo, em muitos casos, a mesma situação que existia há mais de 40 anos. A mexicana indicada ao Oscar defende a união das mulheres para mudar a sociedade e aposta na educação para acabar com o machismo.

 

Yalitza Aparicio em West Hollywood, Califórnia, 15.fev.2019. REUTERS/Mario Anzuoni

 

GENEBRA – No México, poucas vezes um filme teve um papel social de tal proporção como Roma. Ao retratar trabalhadoras domésticas, a produção de Alfonso Cuarón levou as empregadas a se unir e exigir respeito pelo trabalho. Quem conta isso é Yalitza Aparicio, que faz o papel de Cleo.

Para ela, o filme serviu para "abrir os olhos" da sociedade sobre a realidade da mulher e de milhões de trabalhadoras que deixam suas casas e seus filhos.

A atriz mexicana viveu, em sua infância, a realidade de ter uma mãe que era trabalhadora doméstica na casa de outras famílias. Com o filme, ela conta que finalmente entendeu o que fazia sua mãe. Seu papel, dentro do filme e agora como símbolo de uma luta pelo respeito, passa a ser o de tentar romper fronteiras entre classes sociais de países profundamente desiguais para escancarar uma realidade que muitos evitam encarar.

Indicada ao Oscar, Yalitza não esconde que quer continuar sua recém inaugurada carreira de atriz. Eis os principais trechos da entrevista, concedida em Genebra e para marcar o Dia Internacional da Mulher:

UOL – O filme conta uma história mexicana. Mas ele poderia ter sido feito também no Brasil, pelos temas que trata. Qual é, na sua opinião, a principal mensagem desse filme?

São tantas as mensagens que, dependendo da pessoa, ela se identifica com um ou outro aspecto do filme. Mas o que tenho visto é que o filme tem funcionado para ajudar a abrir os olhos e ver o que nos falta como seres humanos.

A situação das empregadas domésticas existe no México. Mas também no Brasil e em toda a América Latina? Quem são hoje essas mulheres?

São mulheres incríveis. que trabalham para as casas, sendo grandes administradoras de residências. Graças a elas, de certa forma, funciona nossa sociedade. Quando um professor sai para dar aulas e tem filhos, quem fica em seu lugar? Essa mulher que dá tudo por essa família. Uma das perguntas que eu me fiz foi: o que ocorre com as mulheres que tem seus próprios filhos e são trabalhadoras domésticas e cuidam dos filhos dos outros? Quem cuida de seus filhos?

Mas essa não era tua situação na infância, diante do trabalho que tua mãe tinha na casa de outras pessoas?

Eu era uma das irmãs maiores e, com dez anos, achava que já estava cuidando de meus irmãos menores. Eu já me sentia responsável. Mas eu me dava conta que, para minha mãe, ela não fazia uma diferença entre nós e as crianças de que ela cuidava. Todos eram seus filhos. Tratava a todos da mesma forma. Se nos dava bronca, dava a todos. Nunca fez a diferença. Através desse filme, eu me dei conta de por que ela era assim. Às vezes, não se entende que essas mulheres estão abrindo mão de tudo o que está fora para cuidar daquela casa e que não se reconhece esse trabalho. São invisíveis. Não lhes dão uma jornada de trabalho adequada, um salário digno. Em alguns casos, não dão nem o respeito que merecem.

Yalitza Aparicio em West Hollywood, Califórnia, 15.fev.2019. REUTERS/Mario Anzuoni

Por qual motivo você acha que existe tanta resistência, principalmente na América Latina, a dar plenos direitos a essas mulheres? Tem uma relação com nossa história, inclusive o peso da escravidão?

Falta-nos educação. Se de fato fôssemos ensinados a respeitar o trabalho de cada pessoa, poderíamos resolver muitas coisas. Talvez nos falte um diálogo e ações entre os empregadores, as trabalhadoras e o governo.

O filme ocorre nos anos 70. Você viveu isso em sua infância e, agora, estamos em 2019. Há alguma mudança entre a personagem Cleo e nossa sociedade hoje?

Muitos dos problemas continuam. Quando saí para estudar para ser professora, conheci muitas mulheres que eram trabalhadoras domésticas e que estão 24 horas numa casa. Era incrível saber que elas não tinham nenhum descanso. Se a dona da casa chegava tarde da noite, elas se levantavam para atendê-la. Quando todos jantavam, era a última, depois de lavar os pratos. Mas, no dia seguinte, a primeira a ter tudo pronto para a família era ela. Mas era ainda mais surpreendente saber que não recebiam um salário justo.

Neste dia 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Você acha que estamos longe ainda para garantir esses salários justos?

Espero que não. Já se passaram tantos anos e seguimos na mesma. Precisamos de um avanço. Precisam receber o que é de direito, pois são trabalhadoras como quaisquer outras. O filme fez com que as pessoas abrissem os olhos e se dessem conta da importância desses direitos. Tomara que, agora, ações sejam tomadas. Não basta apenas entender o problema.

No México, que tipo de reação ocorreu por conta do filme?

Há um grupo de trabalhadoras domésticas que começou a se mobilizar. Foi surpreendente como um filme as permitiu que elas se unissem ainda mais, a exigir e se valorizar. E dizer: "Não apenas limpo uma casa, mas sou uma trabalhadora". Uma das coisas que caracterizam as mulheres é a união e eu espero que isso possa se traduzir em avanços agora.

No filme, fica claro que existe uma relação especial entre Cleo, a sua personagem, e a senhora da casa, interpretada por Marina de Tavira. Mas, ao mesmo tempo, as estimativas são de que, no atual ritmo, faltam mais de cem anos para uma igualdade de condições no mundo entre mulheres e homens. Que mensagem o Dia Internacional da Mulher precisa dar?

Temos que nos apoiar, umas às outras. Como mulheres, mostramos como somos fortes. Sempre nos arriscamos a lutar pelas coisas, por mais que nos tenham colocado obstáculos. Mas aqui estamos. Nos foi dito que, por sermos mulheres, não tínhamos a capacidade de ocupar certos cargos. Mas mostramos que isso não é verdade. Necessitamos alcançar essa igualdade. No filme, Cleo e Sofia (a dona da casa) são de classes sociais diferentes. Mas se unem para o bem-estar da família.

E fora do filme, como é a relação com Marina de Tavira?

Eu vinha perdida. Nem sabia o que tinha de fazer no tapete vermelho. Mas ela sempre esteve me apoiando. Às vezes, nos dávamos as mãos antes de entrar em algum evento. Sempre unidas e os resultados foram muito bonitos. O filme mostra que o apoio entre as mulheres traz resultados. Mas fora dele também vivi isso.

Yalitza Aparicio em West Hollywood, Califórnia, 15.fev.2019. REUTERS/Mario Anzuoni

Brasil tem um enorme contingente de trabalhadoras domésticas. Que mensagem pode ser dada neste momento?

Que se valorize o trabalho que elas fazem. Que tenham o lugar que merecem. Que não aceitem quando se menospreze seu trabalho. Elas são uma base fundamental de nossa sociedade. Elas precisam se dar conta do valor de seu trabalho. Não apenas no Brasil, mas no mundo.

Mas o mundo continua sendo profundamente machista. Como mudar isso?

Com educação. Poderíamos começar a partir das famílias. Como pais, precisamos ensinar o respeito, mostrar que o fato de ser mulher não significa que existam limites. Meus bisavós já me diziam que eu não poderia ficar em casa e que precisava estudar. Também precisamos que essa mensagem seja passada pelos meios de comunicação. Os filmes e programas precisam incluir todos os atores da sociedade. Somos uma sociedade diversa. Mas a tela não mostra isso ainda.

Li uma entrevista sua em que você dizia que não se identificava com as pessoas que a televisão mostrava.

Justamente. Mas isso acontece com muitas pessoas. Algumas pessoas me falavam sobre algum filme e eu e minhas amigas dizíamos: não temos nem ideia de que filme é esse. Estamos estudando. Depois, entre nós, nos perguntávamos: por qual motivo não estamos vendo esses filmes? E a resposta era óbvia: eram contos de fantasia, ninguém se parece comigo e tratam de coisas que jamais acontecerão comigo. Então, eu me focava em estudar e alcançar um trabalho real. E tudo isso te afeta como pessoa e sociedade. A mensagem era clara: isso não é para mim. Meu perfil não permite. Mas, pouco a pouco, você vai se perguntando se você tem o mesmo valor.

Você acha que poderia voltar a ser professora?

Eu nem tive tempo de começar a trabalhar como professora. Tinha acabado de terminar meus estudos. Mas acho que quero continuar a ser atriz.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Roma serviu para “abrir os olhos” da sociedade, diz atriz indicada ao Oscar - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


Jamil Chade


Newsletter