"Vídeo foi mesmo postado por presidente ou era conta fake?"
Jamil Chade
06/03/2019 12h51
Pornografia estatal: saudades do tempo em que o 7 x 1 era a maior das humilhações
GENEBRA – Nesta quarta-feira, fui convidado para falar logo pela manhã no Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra para um seleto grupo de funcionários da ONU, especialistas e acadêmicos. O assunto: o Brasil. Assim que o evento começou, o mediador do debate, um alemão, fez questão de lembrar ao público um certo resultado na Copa de 2014 que até hoje ressoa no Mineirão. Sem graça, eu apenas ri.
Ao começar a palestra, fiz uma rápida introdução e exemplifiquei os desafios de segurança pública com números de um levantamento do Observatório da Intervenção (Universidade Cândido Mendes).
Mas ao dizer cifras como "45 mil roubos de carros em um estado sob intervenção federal em 2018, 3,7 mil homicídios, 11 mil roubos no mês de agosto", vi a surpresa no rosto de pessoas. O público era composto por especialistas acostumadas com desastres internacionais e crises. Mas os olhos arregalados na sala me mostravam a dimensão de nossos problemas.
Horas depois, já na ONU, esbarrei com relatores especiais e ativistas, todos ainda comentando a passagem por Genebra da ministra de Direitos Humanos, Damares Alves. Aquela que se recusou a falar do caso do assassinato de Marielle Franco. Aquela que disse que "todos" os pais gostariam de ter seus filhos filmados cantando o hino nacional.
Pelas salas da ONU, a presença brasileira era composta por vítimas de Brumadinho, indígenas ameaçados e defensores de direitos humanos sob o constante temor do que ocorreria no Brasil nos próximos dias, nas próximas horas.
Um retrato de um momento de um país que busca entender a dimensão do problema em que se encontra.
Ainda na sede da ONU, recebi uma ligação de um representante de um centro internacional de pesquisas que queria comentar uma matéria que eu havia publicado mais cedo, apontando para suspeitas de que contas aqui na Suíça tenham sido usadas para receber propinas das obras da Usina de Belo Monte. "Essa história de fato não tem fim", disse. "O Brasil foi alvo de um saque organizado", completou.
Já era hora de ir para meu escritório – que fica numa das asas do prédio – e começar a escrever. Mas num longo corredor da ONU repleto de imagens que evocam valores universais de direitos humanos, vi que vinha em minha direção um embaixador de um país europeu.O diplomata era um velho conhecido meu que, ao longo dos anos, me forneceu de maneira confidencial informações de reuniões fechadas do Palácio das Nações – como é conhecida a sede da ONU em Genebra.
Uma pessoa que jamais mostrou qualquer sinal de intolerância, uma pessoa moderada.
Ao se aproximar e apertar minha mão, me parou e, como se fosse cochichar, se aproximou. Pensei que eu iria receber mais uma boa dica do que estava ocorrendo na ONU. Mas, desta vez, a pergunta veio dele: "aquele vídeo foi mesmo postado pelo presidente do Brasil ou era uma conta fake?".
Confirmei que, de fato, vinha do próprio presidente, o que lhe deixou mudo por alguns segundos. Ao se despedir, intensificou seu aperto de mão e, em francês, me disse: "courage", tentando me incentivar a não perder a esperança. Cada qual seguiu seu caminho.
Não demorou para eu encontrar no mesmo prédio um membro da Comissão de Inquérito dos Crimes na Síria que, uma vez mais, tocou no assunto do vídeo. Inconformado. Mas não seria uma surpresa. Tratava-se de um brasileiro, antenado com a realidade do país que não da trégua nem num feriado de carnaval.
Não, a vergonha não é apenas a de termos um político que não sabe a dimensão de um chefe-de-estado. De um político que mais parece o retrato do Menino Maluquinho que rouba o paletó do armário do pai para assumir o comando de uma nação.
Não, a crise é muito maior. A pornografia está em cada morte soterrada em Minas Gerais, em cada indígena que se suicida, em cada bala perdida, em cada assassinato ignorado. A pornografia está em cada conta secreta na Suíça, em cada hino que se filma numa escola sem livros, sem futuro.
O resgate da imagem do Brasil – e de sua credibilidade – é uma obra monumental e que promete levar anos para ser reconquistada. Foram diversos governos que contribuíram para uma profunda mancha que não desaparecerá com um populismo vulgar.
Continuei minha longa caminhada pelo enorme prédio da ONU com um só pensamento: que saudades do tempo em que pensávamos que o 7 x 1 era a maior de nossas humilhações.
Sobre o autor
Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.
Sobre o blog
Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)