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Chanceler exerce "autoritarismo inédito no Itamaraty", diz diplomata punido

Jamil Chade

05/03/2019 20h20

Em entrevista ao blog, Paulo Roberto de Almeida diz que foi exonerado por ter questionado Olavo de Carvalho e aponta que existe um clima de "temor" dentro do Itamaraty. Para ele, diplomatas continuam sem saber qual é a política externa do chanceler Ernesto Araújo.

 


GENEBRA – Os diplomatas brasileiros até agora não sabem qual é a política externa do governo de Jair Bolsonaro. Quem faz o alerta é Paulo Roberto de Almeida, embaixador que foi demitido nesta segunda-feira do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), entidade ligada ao Itamaraty.

A exoneração ocorreu depois de o diplomata publicar, em seu blog pessoal, textos em que se questionava a ação do Brasil na Venezuela. Oficialmente, o Itamaraty argumentou que a mudança já estava prevista. Mas a história não foi a mesma relatada em um telefonema em plena segunda-feira de carnaval ao embaixador.

Em entrevista ao blog, Almeida fez uma análise das diretrizes atuais da política externa e relatou o clima de medo que se vive hoje dentro de uma das instituições mais tradicionais do País. O embaixador também ataca Olavo de Carvalho, o acusa de "inepto" e "nefasto" para a política externa brasileiro e aponta que foi afastado de suas funções justamente por tê-lo questionado. "Eu ofendi aquele a quem o ministro de Estado deve seu cargo", lançou.

Mas ele também aponta: o atual chanceler Ernesto Araújo pratica uma espécie de "autoritarismo inédito" dentro da casa de Rio Branco.

Eis os principais trechos da entrevista:

P – Qual foi o argumento usado para sua exoneração?

Almeida – Eu fui despertado na manhã de segunda-feira de carnaval por uma chamada do chefe-de-gabinete do ministro de Estado. Na semana anterior, eu havia conversado com ele sobre meu futuro no Ipri. Com a mudança de governo, eu imaginava que haveria o desejo da administração, como é normal, de escolher novos assessores. Fui informado de que, naquele momento, não haveria mudança alguma. Ainda se aguarda o próximo presidente da Funag, que deve assumir em breve. E que Depois falaríamos sobre o Ipri. Devo dizer que, desde o início do ano, todas as atividades foram interrompidas por instruções expressas da nova chefia. O Ipri não deveria empreender nenhuma atividade até a aprovação de um novo programa de trabalho. Na ligação da segunda-feira, me foi dito que o ministro estava muito descontente com as minhas postagens, especialmente a última que foi feita no domingo. Eu tinha reunido os textos mais importantes de política externa, incluindo uma palestra de Rubens Ricupero, um artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e uma postagem do chanceler Araújo em seu blog, respondendo e atacando ambos. Coloquei isso no meu blog Diplomatizzando e convidei a um debate sobre a política externa, ou aquilo que poderia ser chamado de política externa desse governo.

P – E o que foi dito na conversa ao telefone?

R – Que eu teria extravasado os limites e que diplomatas, mesmo tendo certa liberdade de expressão, precisam guardar alguma disciplina nas manifestações públicas. Eu acho isso correto. Mas há uma alegação, que veio a posteriori, de que eu teria ofendido o ministro (Araújo) e de que fiz acusações pessoais. Não me lembro de ter feito isso. O que eu fiz, sim, foi dirigido ao Olavo de Carvalho, que eu considero uma presença nefasta na política externa. Trata-se de uma pessoa inepta em relações internacionais e que aparentemente tem influenciado algumas vertentes da política externa, como a questão do antiglobalismo, a luta contra o marxismo cultural, o "climatismo" e outras bobagens. É muito negativo o Itamaraty ter entre suas pessoas "inspiradoras" e mestre uma pessoa tão destrambelhada como o quem eu chamo de "sofista da Virgínia". Eu ataquei a pessoa que foi talvez mais influente na designação do ministro atual.

P – Como o sr. avalia essa influência de Olavo de Carvalho?

R – Eu não estou sendo punido por ter colocado artigos do Fernando Henrique ou palestras do Ricúpero. É apenas um pretexto. Isso de que eu tenha feito ofensas pessoais ao ministro é uma acusação indevida. Eu fiz sim ofensas a Olavo de Carvalho e isso é que motivou a punição. Eu acredito que essa seja a razão real. Eu ofendi aquele a quem o ministro de Estado deve seu cargo.

P – Como o pensamento de Olavo de Carvalho pode continuar a afetando a carreira diplomática e o Itamaraty?

R – Olavo de Carvalho é um ser primitivo em relações internacionais, rústico mesmo. Exibe um estado de confusão mental. Ele explora esses jovens sedentos de alguma instrução filosófica ou política. Ele teve um papel importante na denúncia do Foro de São Paulo e o marxismo vulgar das nossas academias. Mas hoje ele tem um papel nefasto na política externa. Ele surfou na onda da crítica da direita à corrupção do PT e na onda anti-petista. Mas eu não vejo nenhuma influência boa para a política externa brasileira. Apenas um debate estéril sobre conceitos vagos, esse monstro metafísico do globalismo. São pessoas absolutamente ignorantes em relações internacionais.

P – Houve uma primeira nota do Itamaraty dizendo que a exoneração do sr. já estava planejada e depois, nas redes sociais, o assessor de política externa, Filipe Martins, indicou que, de fato, teria sido por supostas ofensas. 

R – Eu gostaria de saber quais são essas ofensas, por que não as fiz: falei dos eflúvios olavistas sobre a política externa. Essa talvez seja a razão do rancor do chanceler contra mim: ele se sentiu pessoalmente atingido por eu te depreciado o seu guru.

Olavo de Carvalho

P – Outros embaixadores também já foram exonerados no atual governo. Qual o clima que se vive hoje dentro do Itamaraty?

R – É um clima deprimente. Desde o final de novembro, tivemos vários desencontros entre o chanceler designado e os diplomatas. O primeiro foi na própria montagem dos convidados à posse (de Jair Bolsonaro). O Cerimonial do Planalto convidou todos os países com os quais o Brasil tem relações diplomáticas. O chanceler mandou desconvidar Cuba, Venezuela e depois Nicarágua. A Convenção de Viena indica que se deve tratar todos os países com os quais temos relações diplomáticas de forma igual, sem discriminação com base em ideologia. Isso é sem precedentes na história do Itamaraty e o chefe do Cerimonial do Planalto foi defenestrado antes mesmo de começar o governo. Depois tivemos alguns casos de embaixadores que foram "despromovidos". Os subscretários-gerais, todos embaixadores, foram dispensados a partir de 1 de janeiro. As novas secretarias foram ocupadas por ministros de segunda classe, algo compatível com o chanceler, que é, por assim dizer, um embaixador júnior. Isso também é inédito no Itamaraty, por representar uma quebra de hierarquia. São coronéis mandando em generais. Em segundo lugar, houve uma espécie de isolamento dos assessores de Araújo e eles começaram a reformar o Itamaraty sem nenhuma consulta à casa. Isso foi especialmente chocante. O clima, portanto, é de desalento, de passividade, de inércia, de bastante temor. Ninguém ousa dizer nada. Houve uma espécie de acomodação mútua. A quebra da hierarquia e a imposição de uma reforma pelo alto são elementos chocantes. Mas o chanceler Ernesto vem exercendo uma espécie de autoritarismo inédito no Itamaraty.

P – E qual a percepção do que é a política externa do atual governo?

R – No plano substantivo, todos estão esperando para saber qual é de fato a política externa. O discurso de posse de Araújo foi extremamente decepcionante, pois não trouxe quaisquer indicações sobre o que seria, efetivamente, a política externa.

P – O sr. já tinha notado alguma indicação de que a preparação dos diplomatas seria modificada?

R – Sim, fui até mesmo consultado sobre isso e me recusei a participar desse exercício. Aleguei que não tinha conhecimento suficiente, por não ser professor do Instituto Rio Branco. Eu já previa, pelos discursos e artigos, que viria uma tempestade sobre o Rio Branco. Imaginei que fariam as transformações ideológicas que eu julgava nefastas. A única consideração que eu fiz foi a de consultar em primeiro lugar os alunos, depois o próprio Instituto Rio Branco e insistir mais na formação profissional. Soube que o estudo da América Latina saiu do currículo.

P – Existe hoje um espaço para um debate sobre política externa dentro do Itamaraty?

R – Não, não há. E isso fica evidenciado pelo tema principal atual, que é a Venezuela. Ele está sendo tratado pelo gabinete e sem os responsáveis pela área. No passado, era comum diplomatas "da base" serem chamados ao gabinete para debater os temas do momento com o chanceler. No caso da Venezuela, não há notícia de que esteja havendo uma interação política a partir da base.

P – Hoje, a política externa é resultado da avaliação do interesse nacional ou de uma ideologia?

R – É uma questão difícil de responder. Vemos um amalgama de influências espúrias sobre a política externa. O processo de tomada de decisões no Itamaraty foi sempre alvo de consultas, até fora da chancelaria. Isso foi muito alterado sob Lula. A presidência e o partido ditavam as grandes orientações. A base esperava a decisão da cúpula. Lembro-me de casos envolvendo barreiras da Argentina a produtos brasileiros. Sob FHC, o Itamaraty tinha uma posição clara de acionar os mecanismos de solução de controvérsias no Mercosul ou o GATT. Sob Lula não se fez isso, para "poupar" a Argentina. Pode ser que esse tipo de distorção venha a ocorrer novamente. Mas o mais importante é saber se existe realmente uma política externa. Essa é a questão mais importante. Eu me pergunto: qual é a política externa do atual governo? Eu não sei. Até hoje eu não sei. Aliás, os diplomatas também não sabem.

P – Mas Venezuela é uma questão concreta.

R – Claro. Mas aparentemente está sendo resolvida pelo Conselho de Defesa, com a cúpula militar. Há certa tutela dos militares sobre a política externa.

P – Como essa falta de clareza pode impactar o Brasil no exterior?

R – O Brasil já se submeteu ao ridículo de anunciar sua retirada – depois recuando – do Acordo de Paris, como também anunciou a mudança da embaixada para Jerusalem. Tivemos ainda a proposta de uma base americana no Brasil. A "desassinatura" do Pacto Global de Migrações também é outra medida que confronta nossa história e é ridícula.

P – Ao longo de sua carreira, o sr. também foi alvo de um isolamento por parte do governo do PT. Qual a diferença agora?

R – A forma é a mesma. São dois governos autoritários, ideologicamente motivados que afastam dissidentes. Desde sempre, expressei minhas opiniões. Nunca deixei meu cérebro em casa ao ir trabalhar. Eu sofri punições antes do lulopetismo por publicar artigos sobre a política externa sem autorização. Depois, sob o lulopetismo fiquei "congelado", sem qualquer função, sem nenhum cargo por treze anos. A biblioteca foi meu escritório por muitos anos e agora volto para lá. Ou, como se diz, o Departamento de Escadas e Corredores. Formalmente, não há diferenças. Mas, desta vez, houve uma animosidade pessoal e ideológica. Os petistas sabiam quem eu era e eu escrevia o que eu achava antes mesmo de eles tomarem posse. O ex-chanceler Celso Amorim me ofereceu uma embaixada no exterior, que eu recusei. Mas eu escrevia contra a política externa. Hoje, eu apenas sofro de uma animosidade pessoal dos atuais chefes da casa

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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