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Não faltará tinta

Jamil Chade

21/02/2019 13h13

A democracia morre no escuro e em plena luz do dia. Ela morre e pode ser assassinada. Num beco de uma rua, na rachadura de uma barragem, num barulho de uma serra numa floresta, na falta de um leito, num envelope com dinheiro ou no medo de andar de mãos dadas. E é nosso papel permitir sua sobrevivência. Todos os dias.

 

GENEBRA – Em 1963, o Boletim da Sociedade Americana de Editores de Jornais anunciava: a imprensa não seria mais um mero toca-fitas daqueles que entrevistava. Hitler, Stalin e McCarthy tinham dado uma dolorosa lição ao mundo de que repetir o que esses líderes diziam, sem os questionar, poderia ser perigoso. Eu ousaria a dizer que, em alguns casos, insinuaria uma cumplicidade.

O documento foi citado por Jill Lepore, professora de história da Universidade de Harvard, e que trouxe em seu último artigo na revista The New Yorker a constatação de que mais de 500 jornais americanos fecharam as portas entre 1970 e 2016. O restante promoveu amplas demissões, reduziu o papel ou abandonou a edição impressa para se dedicar ao mundo digital. Nada mais triste que uma voz que se cala. Nada mais preocupante que um país com vozes em uníssono.

Hoje, estamos diante de uma mudança de todos os paradigmas, impulsionada por tecnologias que sequer sabemos para onde vão nos levar. A revolução tecnológica não tem como ser parada. Não vamos perder tempo com isso.

O que não temos o direito de perder é nossa bússola moral: a de informar uma sociedade para que, de uma forma consciente, possa tomar suas decisões.

Nos últimos anos, escancarou-se uma nova realidade; as democracias, seus tribunais, suas leis, suas agências de regulação, seus cidadãos não estavam preparados para a tamanha onda de desinformação.

Ora, a desinformação sempre existiu. Basta lembrar que governos tinham (e talvez ainda tenham) Ministérios da Propaganda. Mas, agora, a desinformação ganhou em sofisticação e tem a capacidade de atingir milhões de pessoas. Se a Internet alimentou revoltas democráticas, ela também deixou o cidadão desorientado entre o que é fato e o que é manipulação.

Hoje, governos e engenheiros proliferam reuniões para traçar estratégias mirabolantes sobre como parar a publicação intencional de mentiras com o objetivo de afetar uma sociedade.

Para os jornalistas, é o momento de voltar a consultar nossa bússola. Quando a Constituição dos EUA foi redigida, o artigo sobre a liberdade de imprensa foi colocado como parte das garantias de que houvesse um monitoramento do estado, sem obstáculos nem intimidações. Uma liberdade que garantiria que profissionais pudessem dar aos cidadãos elementos para que pudessem tomar decisões informadas. A base da democracia.

Talvez tenhamos de acordar todos os dias e voltar a ler aqueles princípios ao lado de nossa primeira xícara de café, como uma espécie de vacina diária aos desafios que passamos a enfrentar.

No início de fevereiro desse ano, durante o Super Bowl, o Washington Post colocou no ar um comercial histórico: "a democracia morre no escuro", declarava. Com a imagem da Estátua da Liberdade, a publicidade alertava: "saber nos mantém livres".

Estou convencido, porém, que a democracia também pode morrer em plena luz do dia, e diante de todos nós.

Basta lembrarmos que, hoje, a Casa Branca é comandada por um presidente que ameaçou fechar coletivas de imprensa para certas emissoras e que qualifica veículos que não o agrada como "inimigos do povo".

Há poucos dias, aqui na sede da ONU em Genebra e por onde eu percorro os corredores há 19 anos, tive de escutar da delegação da Nicarágua que o país vivia na "mais tranquila paz". Eu me questionava se era a mesma Nicarágua onde as autoridades confiscaram a tinta e suspenderam a autorização de importação de peças das impressoras de jornais para impedir que os diários possam rodar.

Na mesma ONU, um discurso em 2018 do líder chinês, Xi Jinping, para defender o multilateralismo ocorreu com ordens claras aos organizadores do evento para impedir a entrada da imprensa. Num salão para 2 mil pessoas, as cadeiras tradicionalmente reservadas para os jornalistas permaneceram vazias.

De direita ou esquerda, superpotências ou bastiões da resistência anti-imperialista, governos vem encontrando um inimigo comum: a imprensa. Com esse ataque, são valores estabelecidos de direitos humanos e liberdades básicas que estão sendo questionados.

Líderes do "mundo livre" estão criminalizando a imprensa e, de uma forma irresponsável, lutando por votos por meio de uma estratégia suicida: a de fraturar sociedades e alimentar o ódio.

Uma resistência, portanto, se impõe. E essa resistência não é ideológica. É resistir ao mundo pós-fato. É a resistência de informar com apuração e dados, de fazer uma auto-crítica. Ouvir todos os lados da história, garantir o contraditório. É combater a repressão da esquerda ou da direita, de regimes autoritários ou pseudo-religiosos. É a de dar oxigênio para a democracia.

É colaborar com a insurreição das mentes. Não uma insurreição armada. Mas sim uma insurreição da informação, da educação. Só isso neutraliza a manipulação das massas. Só essa insurreição combaterá a desinformação estrategicamente proliferada com fins políticos, o que se dá o nome de Fake News.

A democracia morre no escuro e em plena luz do dia. Ela morre e pode ser assassinada. Num beco de uma rua, na rachadura de uma barragem, num barulho de uma serra numa floresta, na falta de um leito, num envelope com dinheiro ou no medo de andar de mãos dadas. E é nosso papel permitir sua sobrevivência. Todos os dias.

Bem-vindos a esse novo espaço!

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Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)


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