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Jamil Chade

Sem votos suficientes, Brasil cede na ONU em resolução sobre Venezuela

Jamil Chade

23/09/2019 04h00

Fachada do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. (Divulgação)

 

GENEBRA – O governo brasileiro foi obrigado a ceder e aceitou rever sua proposta de resolução na ONU que criaria uma comissão de inquérito internacional para investigar os crimes cometidos por Nicolas Maduro. Diante da oposição de países europeus e diversos latino-americanos, o Itamaraty teve de flexibilizar sua posição e aceitar apenas o envio de uma missão com um perfil mais restrito, num gesto que foi recebido pelos demais governos como um sinal dos limites da posição da diplomacia brasileira.

A votação ocorre em Genebra no final da semana no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas a iniciativa será alvo de intensas negociações durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. A delegação brasileira, conforme o blog revelou, recebeu uma orientação do governo americano para apresentar a resolução e o texto acabou se transformando em uma iniciativa do Grupo de Lima. Em Nova Iorque, a delegação brasileira ainda será composta por membros da oposição venezuelana.

Mas o projeto do Departamento de Estado, usando o Itamaraty, ameaçou não ser aprovado e a resolução acabou sendo modificada.

O texto original previa a criação de uma comissão de inquérito, algo que colocaria a situação da Venezuela no mesmo patamar de Síria, Mianmar, Coreia do Norte e Sudão. Além de investigar os crimes, o Brasil queria que a comissão também designasse os autores das violações, abrindo a possibilidade para que fossem levados a tribunais internacionais. Dentro de um projeto americano mais amplo, essa iniciativa ajudaria a colocar pressão sobre Maduro.

Mas a proposta não era bem-vista nem pela ONU e nem por diversos governos democráticos, como Espanha e mesmo a Itália.

O argumento da oposição ao texto era de que, ao criar a comissão, Maduro poderia romper definitivamente com a ONU, justamente no momento em que a entidade conseguiu abrir um escritório em Caracas para monitorar as violações de direitos humanos.

O temor da cúpula da Europa é de que, com um rompimento, seu escritório seja fechado, impedindo o acompanhamento dos casos. Maduro, ao mesmo tempo, não permitiria a entrada da comissão de inquérito e o resultado seria a incapacidade da comunidade internacional de saber o que ocorre dentro da Venezuela.

Entre os europeus, outra preocupação tem relação com o impacto que tal comissão poderia gerar nos esforços de mediação entre a oposição venezuelana e o regime de Maduro. Nos últimos meses, o governo da Noruega passou a organizar esse diálogo, ainda que sem êxito por enquanto.

Com a criação de uma comissão de inquérito que denuncie Maduro por crimes, a Europa acredita que esse esforço de encontrar uma solução política teria de ser abandonado.

Missão

A opção foi a de aceitar a recomendação da Europa, que prevê apenas o envio de uma missão para a Venezuela para coletar dados sobre execuções sumárias, desaparecimentos, detenções arbitrárias e tortura.

No meio diplomático, o envio de uma "missão de apuração de fatos" (Fact Finding Mission) não representa o mesmo nível de pressão que uma comissão de inquérito internacional, aberta a investigar todos os aspectos da crise na Venezuela e de forma permanente.

O novo rascunho da resolução, obtida pelo UOL, ainda estabelece uma condição: caso Maduro não coopere com a missão e se a crise se aprofundar ainda mais, a comunidade internacional voltaria a considerar a criação de uma comissão de inquérito.

O posicionamento que o Itamaraty acabou aceitando se contrasta com uma declaração emitida na semana passada pela própria chancelaria. Numa nota à reportagem, o governo insistia que "só uma comissão de inquérito internacional pode cumprir efetivamente a recomendação de responsabilização contida no relatório da Alta Comissária". O relatório em questão era o levantamento que Michelle Bachelet, número 1 da ONU para Direitos Humanos, havia produzido sobre a situação na Venezuela e que sugeria uma apuração para determinar os responsáveis pelas violações.

Do lado de Caracas, a medida proposta no novo texto continua sendo inaceitável e Maduro contará nos próximos dias com o lobby de governos como o da Rússia, China, Cuba, África do Sul e outros que tentaram convencer países a, pelo menos, se abster na votação.

 

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)