EUA pedem apoio do Brasil para vetar "direitos sexuais" em decisões da ONU
Em carta obtida pelo UOL, Washington solicita a Brasília que se una a uma aliança para impôr agenda ultraconservadora na Assembleia Geral da ONU, na semana que vem. Itamaraty vê o pedido "com interesse".
GENEBRA – O governo do presidente Donald Trump enviou uma carta ao Brasil e a um grupo restrito de outros governos conservadores pedindo que os países estabeleçam uma aliança na Assembleia Geral da ONU. A meta é de vetar qualquer tentativa de aprovar resoluções que tratem de ampliar direitos sexuais ou implementar educação sexual.
A Assembleia Geral da ONU começa na semana que vem e será aberta pelo presidente Jair Bolsonaro. Além do Brasil, a carta também foi enviada a governos ultraconservadores como a Arábia Saudita, Iraque e Egito.
O UOL obteve confirmação de que o texto enviado foi assinado por Mike Pompeo, secretário de Estado norte-americano, e pelo Secretário de Saúde dos EUA, Alex Azar. Nela, os americanos pedem que o Brasil se una a uma declaração conjunta, a ser lançada em Nova Iorque, e com o objetivo de adotar uma postura contrária a termos como "saúde sexual e reprodutiva". A meta é ainda a de garantir que "nossos valores compartilhados" prevaleçam no organismo internacional.
O texto foi enviado em julho com vistas ao encontro agendado pela ONU para debater assuntos de saúde, no dia 23 de setembro em Nova Iorque. O assunto da cúpula é a garantia de cobertura universal de saúde como forma de ampliar o bem-estar das populações.
Mas o que deveria ser um consenso internacional pode ruir diante da criação de um bloco conservador disposto a vetar certos termos. Diplomatas confirmaram à reportagem que essa é a primeira vez que uma administração americana se envolve de forma tão profunda no debate na ONU sobre gênero e direitos das mulheres.
Governos europeus e mesmo alguns latino-americanos rejeitam a ideia americana de retirar termos como "saúde reprodutiva e sexual" do texto em Nova Iorque. A UE insiste que tais termos, assim como educação sexual, foram já aprovados em resoluções nas demais Assembleias Gerais da ONU e na OMS.
Desde a semana passada, diante do risco de um colapso nas negociações, mediadores da Tailândia e Geórgia passaram a tentar aproximar as posições, sem sucesso.
Carta
Na carta, os americanos solicitam que o governo "se junte aos Estados Unidos para garantir que cada estado soberano tenha a capacidade de determinar a melhor maneira de proteger o nascituro e defender a família como a unidade fundamental da sociedade vital para que as crianças prosperem e tenham uma vida saudável".
Washington se diz "seriamente preocupada diante dos esforços agressivos para reinterpretar os instrumentos internacionais para criar um novo direito internacional ao aborto e para promover políticas internacionais que enfraquecem a família têm avançado através de alguns fóruns das Nações Unidas".
"Evidências disso são encontradas em referências em muitos documentos multilaterais de política de saúde global para interpretar "educação sexual abrangente" e "saúde sexual e reprodutiva" e "saúde e direitos sexuais e reprodutivos" para diminuir o papel dos pais nas questões mais sensíveis e pessoais orientadas à família", afirmam.
A avaliação dos EUA é de que tais termos tem sido manipulado para aprovar a "promoção do aborto".
A Casa Branca também denuncia a "pressão sobre os países para que abandonem os princípios religiosos e as normas culturais consagrados na lei que protegem a vida não nascida". "Estas abordagens minam o nosso compromisso comum com o desenvolvimento sustentável e com a saúde para todos, não deixando ninguém para trás", escreveram.
"Os esforços para fazer avançar essas políticas prejudiciais em contextos multilaterais onde a política global de saúde é debatida e definida, como as Nações Unidas e órgãos afiliados, como a Organização Mundial da Saúde, são perturbadores e devem ser desafiados", defendem.
"Eles tiram o foco de questões reais de saúde e importam debates sobre políticas que devem ser tratados em nível nacional, subnacional ou comunitário", dizem.
"Além disso, estamos desapontados com o fato de o tom desses debates ser cada vez mais divisório, diminuindo o foco nas prioridades globais de saúde compartilhadas", destacam.
Em maio, o governo brasileiro já havia se unido aos americanos durante a Assembleia Mundial da Saúde na apresentação de uma "declaração conjunta que conclama as nações a promover programas e iniciativas positivas de saúde da mulher em linha com as metas de desenvolvimento sustentável, mas declarando inequivocamente que termos e expressões ambíguas causam confusão e estão associados a políticas anti-família e pró-aborto".
No Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil também passou a adotar uma postura contrária a qualquer referência aos termos de direitos sexuais e reprodutivos, rejeitando ainda a referência à "igualdade de gênero".
Resposta
Procurado pelo UOL, o Itamaraty confirmou que recebeu a carta e indicou que os demais países que também foram consultados faziam parte de um grupo que, em maio, já havia atuado de maneira coordenada na OMS.
"O Brasil considera prioritário o tema de cobertura universal de saúde e defende no âmbito internacional o acesso de todos a serviços de saúde de qualidade", disse a chancelaria, por meio de uma nota.
"Recorde-se que, no país, a saúde é um direito garantido na Constituição, e que o SUS é o maior sistema público gratuito e universal do mundo", destaca. "O Brasil tem atuado a favor do fortalecimento do papel da família como importante pilar da saúde e nos termos da legislação brasileira com relação ao tema do aborto – considerado ilícito, com exclusão de punibilidade em três casos pontuais", afirmou o Itamaraty.
"O país vê, portanto, com interesse a proposta de atuação conjunta e avalia sua forma de atuação com relação ao tema no âmbito da Reunião de Alto Nível", indicou o governo.
"Na comunicação, o governo dos EUA convida o governo brasileiro e outros países a somar-se aos esforços para assegurar a soberania de cada Estado para definir a melhor maneira de proteger a vida e defender a família. Ressalta-se a linguagem empregada em documentos multilaterais, que poderia ser interpretada como estímulo à criação de um direito internacional ao aborto e promover políticas internacionais de enfraquecimento da família. Cita, igualmente, a interpretação ambígua a que se prestam expressões relacionadas aos temas de saúde sexual e reprodutiva e de educação sexual", explicou o Itamaraty, citando o documento.
"A carta critica, ainda, o tratamento desses temas em meio à discussão de políticas de saúde global, em particular da Organização Mundial da Saúde, mas também em outros foros das Nações Unidas, em detrimento de questões mais prioritárias na área da saúde", disse. "Propõe aos governos afins atuar conjuntamente no sentido de reafirmar sua posição crítica a expressões que podem ser utilizadas de maneira não consensuada entre os Estados na área de saúde durante a Sessão de Alto Nível sobre Cobertura Universal de Saúde", explica.
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