OAB denuncia Brasil na ONU e governo insiste em chamar 1964 de "evento"
Em Genebra, OAB se uniu ao Instituto Vladimir Herzog para denunciar ameaças ao "frágil processo de redemocratização" no Brasil. Entidades solicitaram que Nações Unidas monitorem atitude do governo sobre crimes da Ditadura
GENEBRA – A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pede que os mecanismos especiais da ONU façam um monitoramento e reforcem o acompanhamento sobre o comportamento do governo de Jair Bolsonaro de realizar um desmonte dos instrumentos de Justiça, Verdade e Memória no país.
No primeiro discurso realizado pela OAB no Conselho de Direitos Humanos da ONU, a entidade fez questão de denunciar as ameaças que pairam sobre "o frágil processo de redemocratização" no Brasil e solicitar que os relatores da instituição internacional redobrem a atenção com o País, diante dos acontecimentos dos últimos meses e das repetidas declarações de Bolsonaro a favor de ditaduras sul-americanas.
A iniciativa da OAB teve o apoio do Instituto Vladimir Herzog. As entidades ainda mandaram um comunicado às Nações Unidas para denunciar as medidas adotadas pelo governo e pedindo ações.
A intervenção da OAB ocorre um dia depois que o governo brasileiro se recusou a responder se considera que houve um golpe de estado em 1964, num evento na ONU. Nesta quarta-feira, o governo voltou a se recusar a responder sobre os comentários elogiosos de Bolsonaro a ditadores no Cone Sul.
"As políticas de justiça de transição estão sendo desmanteladas, seja por subfinanciamento ou pela substituição de funcionários por membros que não têm experiência ou afinidade com o tema e que, às vezes, minam o sofrimento dos sobreviventes e as atrocidades cometidas durante a ditadura", disse na ONU o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Hélio Leitão.
"Além disso, o atual governo do Brasil tem repetidamente insistido em mudar a narrativa sobre as atrocidades cometidas durante a última ditadura, inclusive instruindo os militares a comemorar o golpe de Estado de 31 de março de 1964", apontou.
"Os altos tribunais brasileiros validaram esse ato presidencial sem levar em conta qualquer padrão internacional", destacou, numa reunião com os relatores da ONU para o Direito à Verdade e para Desaparecimentos.
"Pedimos que seus mandatos redobrem a atenção para esse grave retrocesso institucional no Brasil, que ameaça, em sua totalidade, nosso ainda frágil processo de redemocratização", disse Leitão.
Diante da ONU, a OAB indicou que "desde sua redemocratização, o Estado brasileiro ainda tem uma importante dívida social a enfrentar no que diz respeito à justiça de transição, com 434 pessoas entre os mortos e desaparecidos e o genocídio de pelo menos 8.350 povos indígenas durante a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985".
Evento, não Golpe
Diante da denúncia, o governo brasileiro pediu às Nações Unidas um direito de resposta. Em seu discurso diante do Conselho da ONU, o Itamaraty voltou a repetir o mantra do presidente Bolsonaro que não houve uma instrução para comemorar a data de 31 de março de 1964. Mas para relembra-la. A instrução tampouco serviria para "justificar violações de direitos humanos".
O ato de Bolsonaro, segundo o governo, foi realizado dentro das regras. "Liberdade de pensamento é fundamental de qualquer democracia", disse a delegação. "Saudamos o debate público sobre os eventos de 1964", afirmou. A frase, porém, é interpretada na ONU como justamente uma tentativa de se reabrir o debate e relativizar a existência de um regime militar.
O governo também nega que as mudanças nos mecanismos de Justiça e Memória no Brasil tenham objetivos políticos. "Mudanças em composição é consequência natural de mudança democrática de governo", disse a delegação. "O Brasil reafirma seu compromisso com a democracia, estado de direito e direitos humanos", completou.
Fabian Salvioli, relator da ONU para o Direito à Verdade, não citou o Brasil textualmente em seu discurso. Mas fez um alerta que foi interpretado por diplomatas, ongs e entidades como um recado ao governo brasileiro.
O relator apontou que o discurso de autoridades de questionar o direito de vítimas à reparação é uma forma de tentar colocar a população contra essas pessoas. Uma das maneiras de desmontar a legitimidade dessas vítimas, segundo ele, é a de apontar como elas estariam se aproveitando do dinheiro do estado.
"É um insulto dizer que vitimas estão em busca de dinheiro", atacou o relator. Para ele, a reparação pelos abusos "é um direito". O UOL revelou nesta semana que o pedido do relator para visitar o Brasil tem sido ignorado pelo governo de Bolsonaro. "Estou esperando respostas positivas neste sentido", disse Salvioli.
Bernard Duhaime, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre desaparecimentos forçados, lembrou da Operação Condor na América do Sul. Para ele, o "silêncio aprovador" da parte de alguns países não pode ser aceito.
Bachelet
O representante da OAB que foi até a ONU ainda aproveitou sua passagem por Genebra para, em uma conversa com Michelle Bachelet, prestar a solidariedade da entidade brasileira com a chilena. A alta comissária da ONU para Direitos Humanos foi alvo de ataques por parte do presidente brasileiro, que fez questão de elogiar o regime de Augusto Pinochet e citar a morte do pai da representante da ONU. Bachelet foi detida e torturada.
Na OAB, o comportamento de Bolsonaro foi interpretado como sendo similar ao que o presidente havia adotado contra o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Seu pai foi vítima da Ditadura e Bolsonaro, num comentário no mês passado, insinuou que ele teria sido morto por seus próprios companheiros de resistência.
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