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Jamil Chade

ONU conclui que maior acesso a armas gera mais violência, não segurança.

Jamil Chade

08/09/2019 17h29

Linha de produção da fabricante de armas Taurus, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul (DIEGO VARA/Reuters)

 

Relatório das Nações Unidas vai na direção contrária ao discurso armamentista de Bolsonaro. Documento será alvo de debates entre os governos, em Genebra. 

 

GENEBRA – Um levantamento realizado pela ONU e que será debatido entre os goveros nesta semana em Genebra revelará que um maior acesso a armas em mãos de civis gera mais violência e abusos de direitos humanos. A constatação também é de que, quanto maior o número de armas à disposição, maior a insegurança em uma sociedade, e não o contrário.

"O maior acesso de civis a armas de fogo, incluindo armas legalmente adquiridas, leva a um aumento dos níveis de violência e insegurança que afetam negativamente os direitos humanos", conclui o informe, que foi elaborado após ampla consulta da entidade a pesquisas empíricas, especialistas, levantamentos específicos de regiões mais violentas e consultas com governos.

"Em particular, a aquisição, posse e uso civil de armas de fogo representam riscos directos para os direitos à vida, à segurança da pessoa, à liberdade de religião, à liberdade de expressão e à liberdade de desfrutar da sua cultura, religião e língua", aponta o documento preparado pelo Escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos. O orgão é liderado pela chilena Michelle Bachelet que, na semana passada, criticou a violência policial no Brasil.

No caso do documento sobre o impacto das armas, as situações no Brasil e na América Latina são citadas de forma exaustivas.

O debate na ONU ocorre no momento em que o governo de Jair Bolsonaro adota um discurso armamentista, o que de fato já levou a um aumento no número de pedidos de registros de armas no Brasil nos seis primeiros meses do ano. Além disso, um projeto de lei tramita no Legislativo, também apoiado pelo governo.

Civis no mundo possuem, segundo a ONU, um total de 850 milhões de armas, um número muito superior ao que está nas mãos de policiais e militares. Apenas 12% delas, porém, estariam registradas.

Essas armas são usadas em cerca de 174 mil homicídios por ano no mundo e é na América Latina que esse número bate recordes.

Segundo o levantamento, solicitado pelos próprios governos, "o acesso civil a armas de fogo também compromete os direitos à moradia, saúde e educação adequadas, bem como o direito à igualdade e à não discriminação".

Uma vez mais, o caso latino-americano é citado e a interrupção de aulas nas escolas no Rio por conta de tiroteios é usada como exemplo do impacto social. O Brasil também é citado como um exemplo de como as armas podem ter um impacto na saúde mental da população.

"O aumento do acesso civil a armas de fogo também tem impactos específicos sobre os direitos humanos de mulheres, crianças e adolescentes e minorias étnicas, conforme destacado no relatório", aponta.

"Dado o dano potencial e o impacto devastador do uso indevido de armas de fogo sobre o gozo dos direitos humanos, a legislação e as políticas públicas relativas ao acesso de civis a armas de fogo devem ser formuladas e revistas com uma lente de direitos humanos", recomenda.

Propostas

Entre as medidas recomendadas está a adoção de "legislação que exija verificações completas dos antecedentes de todos os potenciais compradores ou destinatários de transferências de armas de fogo, antes da execução de qualquer venda ou transferência, que, no mínimo, incluam a análise do antecedente criminal da pessoa, especialmente por infrações violentas; estar sob acusação por um crime envolvendo uma infração violenta; antecedentes de violência de gênero, sexual ou doméstica; e condições médicas, incluindo antecedentes de abuso de drogas ou álcool ou questões de saúde mental que possam levar a danos pessoais ou danos a terceiros".

A ONU também sugere que leis sejam criadas para "exigir o armazenamento seguro de todas as armas de fogo, com o objectivo de proteger os indivíduos, especialmente as crianças, de se ferirem a si próprios e aos outros".

Entre as medidas, pede-se também que se " imponha penalidades e/ou sanções administrativas adequadas para a descarga não autorizada de armas de fogo para fins de celebração".

A proposta ainda incluir "adotar legislação que contemple o fluxo ilícito de armas de fogo e munições e promova a responsabilidade nas transferências internacionais de armas convencionais, enfatizando a adesão ao direito internacional dos direitos humanos, inclusive através da assinatura e ratificação do Tratado sobre o Comércio de Armas".

Por fim, a ONU sugere que governos façam uma revisão das "regras que regem o uso da força em autodefesa para garantir a sua conformidade com o direito internacional dos direitos humanos e, em particular, revogar leis de autodefesa excessivamente permissivas".

De um forma mais ampla, o documento ainda sugere que governos implementem "programas que reúnam serviços sociais, profissionais de saúde e de aplicação da lei e agentes comunitários para enfrentar e combater as causas profundas da violência por armas de fogo entre civis, especialmente entre crianças e adolescentes que são particularmente vulneráveis ao recrutamento para gangues e outras formas de crime organizado".

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)