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Jamil Chade

Contra as mudanças climáticas, um retorno a práticas milenares

Jamil Chade

08/09/2019 04h00

Na Indonésia, produção de arroz enfrenta desafio de mudanças climáticas. Foto: Jamil Chade

 

Na Indonésia e Sudeste Asiático, produção de arroz sofre com a mudança no padrão de chuvas e entidades internacionais temem que uma das bases da alimentação mundial possa passar por problemas, com um impacto social e na violência. IPCC apela para que governos escutem povos tradicionais e indígenas na gestão de terras.

 

 

Sidemen, INDONESIA – Sentado ao final de uma tarde entre os terraços de um arrozal, Made parece ter o olhar perdido ao acompanhar a pipa que seu filho solta. O costume local é o de mantê-la voando por horas, a mais de 20 metros de altura. Enquanto o garoto busca o melhor vento para fazer suas manobras, o agricultor está mais preocupado em acompanhar o movimento das nuvens que pairam sobre sua pequena produção de arroz.

"Por enquanto, o resultado da colheita neste ano é muito ruim", disse ao UOL. Made, como tantos outros nas ilhas de Bali ou Java, acha que não pode controlar o que está ocorrendo. "Já não sabemos qual é o ritmo das chuvas aqui", disse, apontando para nuvens negras que se aproximavam. "Ficamos sem saber quando plantar, quando colher e o que fazer para garantir renda", lamentou.

O mês de agosto deveria ser de forte sol e pouca chuva. Já os meses de janeiro a maio eram para ter registrado uma situação inversa. Mas, neste ano, nada disso parece mais ser uma certeza. A seca se estendeu por um tempo maior que de costume e o resultado foi o temor de que o governo tivesse de aumentar a importação de arroz.

Com o risco de amplo impacto social, o governo chegou a avaliar a possibilidade de promover chuva artificial. Tampouco ajudaram os incêndios registrados em Sumatra e Kalimantan, em grande parte para a produção de commodities.

Mas assim como centenas de pequenos produtores da região, Made aposta em práticas milenares para superar os problemas. Ele organiza sua produção dentro das regras do "subak", um sistema comunitário e profundamente democrático que foi primeiro registrado no século XI para garantir a gestão da água.

Seu objetivo, longe das castas, é o de permitir que todos possam ter uma colheita adequada. O mecanismo sobreviveu a invasões, guerras, pragas, à ditadura de Suharto e até erupções vulcânicas durante cerca de mil anos.

Hoje, talvez enfrente seu maior desafio: o das mudanças climáticas. Mas ambientalistas e pequenos produtores insistem que será justamente protegendo essa forma de cultivo que, de alguma forma, populações inteiras de trabalhadores rurais poderão sobreviver.

Made, na Indonésia, já não consegue mais prever as chuvas como fazia antes. Foto: Jamil Chade

 

Há poucas semanas, em Genebra, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática apresentou um relatório que revelou que a degradação é menor em territórios administrados por povos indígenas e tradicionais. Os cientistas, portanto, sugeriam ao governos que confiassem a essas comunidades a administração de terras, como um caminho para garantir a produtividade agrícola e, ao memo tempo, mostrar soluções para lidar com a exploração sustentável de terras.

Na Indonésia e no Sudeste Asiático, o arroz não é apenas mais um alimento. Ele é sinônimo de subsistência para milhões de pequenos agricultores e, segundo estudos, seu acesso e preço estão diretamente relacionados com riscos de distúrbios sociais e violência. O produto é a base alimentar de diversos países e a FAO considera que, pelo mundo, 600 milhões de pessoas contam com o arroz de alguma forma para garantir uma alimentação adequada.

Presente na cultura de diferentes regiões há pelo menos 4 mil anos, o arroz terá de ver sua produção aumentar de forma importante nos próximos anos. De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisas sobre o Arroz (IRRI, sigla em inglês), a expansão terá de ser de 25% em 25 anos apenas para atender à demanda.

Por enquanto, porém, o que se vê é um desafio cada vez maior diante do impacto já real das mudanças climáticas. Dos mais de 154 milhões de hectares cultivados de arroz pelo mundo, 88% deles estão na Ásia. E a região sabe que os efeitos climáticos já são uma realidade.

Made explica que, neste ano, nem as constantes preces e oferendas dedicadas à Dewi Sri, a deusa do arroz, parecem estar ajudando. Os pequenos agricultores consideram que estão na linha de frente do combate contra as mudanças climáticas. E, por enquanto, estão perdendo a batalha.

Na floresta perto de arrozais nas proximidades de Munduk, nas montanhas de Bali, as chuvas há poucos meses ainda levaram consigo pontes e destruíram parte da infraestrutura, justamente num período do ano que não deveria chover.

A preocupação de Made é confirmada em dezenas de estudos produzidos nos últimos anos. Há dez anos, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas já alertou que a Ásia estaria entre as regiões mais afetadas. De fato, nos últimos cinco anos, o número de enchentes e períodos de seca aumentaram. O resultado tem sido a perda de 50% das terras irrigáveis nas Filipinas, a perda de 200 quilômetros quadrados de terras na Indonésia e um impacto também significativa na Tailândia e Vietnã.

Em 2011, por exemplo, enchentes já tinham gerado perdas de 1,3 milhão de toneladas de produtos agrícolas na Indonésia. O impacto significou a redução de renda em US$ 353 milhões para cerca de 4 milhões de agricultores.

Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, os efeitos das mudanças climáticas vão exacerbar as dificuldades para os agricultores na Indonésia, nos próximos anos. E as estimativas apontam que serão as comunidades mais pobres as que mais sofrerão.

Agricultores locais e especialistas sabem que a única forma de manterá produção e o sistema de gerenciamento de águas é com medidas de adaptação. Um estudo realizado pela Universidade de Sebelas Maret, por exemplo, constatou que fazendeiros que tomaram medidas para enfrentar as mudanças climáticas conseguiram reduzir em parte da perda de produtividade. O levantamento mostrou que a queda, quando adotados mecanismos de irrigação e gestão dos solos, foi de 15%. Aqueles que não tem recursos chegam a perder 32% de sua produtividade.

Para o Banco Mundial, sem uma ação real para planejar as futuras colheitas, as perdas podem ser profundas. A partir de 2030, a estimativa é de que a perda de fertilidade do solo atinja de forma importante a produção de arroz, com queda de produtividade de até 4% ao ano.

 

Medidas

O temor, entre muitos agricultores e ambientalistas, é de que as crescentes dificuldades levem os produtores a abandonar suas terras. Em muitas delas, a geração mais nova não quer repetir o trabalho dos pais e avós, buscando um emprego no setor do turismo. Uri, um guia turístico em Bali, confirmou à reportagem, que deixou a produção de sua família para atender os turistas australianos.

O risco, os estudos admitem, é que as dificuldades climáticas gerem um êxodo rural e a região simplesmente não tenha arroz suficiente para abastecer sua própria população. No ano passado, os agricultores já foram proibidos de exportar os produtos, com o governo temendo uma escassez e eventual inflação.

Por isso, a estratégia tanto de prefeituras locais como de entidades internacionais é a de agir para fortalecer a gestão das águas. Na Ilha de Bali, a resposta tem sido justamente a de proteger o subak e tentar proteger as comunidades que usam o sistema. Em 2012, a Unesco concedeu status de Patrimônio Mundial para os terraços de plantação de arroz de Jatiluwih.

De uma só vez, a entidade garantiu uma maior atenção do turismo mundial. Mas estabeleceu que, para que o status fosse mantido, os produtores locais teriam de garantir a sobrevivência de 14 cooperativas em onze vilarejos da região.

A esperança é de que, com a proteção, fazendeiros não sejam levados a vender seus terrenos para empreendedores que, com a onda de turistas, querem usar as terras para construir hotéis.

Na região de Munduk, também em Bali, associações também tem se lançado em proteger o subak como forma de garantir uma resposta às mudanças climáticas.

Equivalente a uma cooperativa de água, o sistema de mil anos foi estabelecido lentamente, com a construção de milhares de quilômetros de canais a partir das montanhas. Juntos, os produtores que fazem parte de um subak tomam decisões sobre quando vão plantar, que tipo de arroz vão plantar e quem vai receber água.

Enquanto a terra de um dos agricultores é irrigada pelo sistema, todos os demais o ajudarão na preparação do cultivo.  Considerado como uma dádiva divina, a água é ainda coordenada por meio de barreiras criadas nos canais e que dirigem os recursos a quem precisa.

O sistema é ainda permeado por templos hindus, que também servem de locais para que os agricultores estabeleçam a agenda de irrigação. Profundamente democrático, o mecanismo tem como princípio o fato de que todos precisam ter acesso a um recurso cada vez mais imprevisível.

A irrigação usando os canais ainda também tem outro objetivo: trazer a água de locais vulcânicos, rica em fosfato e potássio. O resultado é que, em cada terraço de arroz, os produtores formam uma espécie de pequenos lagos artificiais, repletos de nutrientes e com a água servindo como fertilizante.

A outra vantagem destacada pelos ambientalistas é o fato de os terraços em diferentes níveis podem gerar um fluxo permanente da água, algo que demonstrou ser um sistema eficiente para o controle de pestes.

Para o ambientalista Nyoman Bagiarta, proteger o sistema de irrigação milenar é uma obrigação, assim como chegar a acordos sobre o que plantar para não desgastar as terras. Segundo ele, a quantidade de água na ilha de Bali começa a cair de forma importante, mesmo com as chuvas em momentos que deveriam ser de seca. Em 1960, por exemplo, o local contava com cerca de 800 rios. Em 1980, esse número caiu para 410 e, hoje, apenas 142 tem ainda corrente.

Na avaliação dos pequenos agricultores, diante das incertezas, proteger a gestão democrática da água será fundamental para que possam sobreviver. Ainda que o sistema usado seja, no fundo, o mesmo que existiu por mil anos.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)