Para planeta sobreviver, agricultura terá de passar por nova revolução
Rascunho de documento preparado por cientistas que será submetido ao IPCC conclui que modo de produção agrícola e consumo atual não são sustentáveis, acelerarão degradação e levarão milhões à pobreza.
GENEBRA – A sociedade terá de mudar a forma pela qual produz, transporta e até consome alimentos se quiser evitar um desastre social e climático nas próximas décadas. Essa é a principal conclusão de um rascunho de um novo documento que será considerado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a partir de agosto.
O documento obtido pelo UOL, datado de final de abril, já sofreu algumas mudanças desde então e passou por edições para sua consideração final. Mas fontes confirmaram que as linhas gerais continuam as mesmas, assim como os alertas.
Ganhador do prémio Nobel da Paz, o IPCC tem sido o responsável por revelar ao mundo a dimensão das transformações climáticas que enfrenta o planeta. De uma forma técnica e não política, os cientistas do IPCC constatam agora que, da forma que está organizada hoje, a agricultura não é sustentável e pode aumentar a pressão sobre florestas e sobre a própria temperatura média do planeta.
Propondo praticamente uma nova relação entre a sociedade e o uso da terra, os especialistas são categóricos: se nada for feito, os preços de alimentos aumentarão, as populações estarão menos resistentes às mudanças climáticas e o impacto pode ser "irreversível" sobre a fome e sobre os ecossistemas, dos quais a humanidade depende.
Hoje, o desmatamento contribui com cerca de 10% a 15% das emissões de CO2. Desde 1961, 5,3 milhões de quilômetros quadrados foram transformados em terras aráveis, o equivalente a dois terços da Austrália. Para os cientistas, "a taxa e extensão geográfica de exploração de terras nas últimas décadas é sem precedentes na história humana". Isso, segundo o novo documento, levou à perda de biodiversidade e acelerou degradação de terras.
Hoje, segundo eles, 22% de emissões de gases de efeito estufa tem origem na agricultura e no uso da terra. Considerando todo o sistema alimentar global – produção, transporte e consumo – o setor representaria 30% das emissões.
A produção agrícola é ainda responsável por metade das emissões de metano e 75% de N20, taxa que dobrou desde 1961. Ouso de fertilizantes se multiplicou por nove, enquanto a área irrigada dobrou. Segundo os cientistas, a irrigação para a agricultura hoje consome 70% do uso de água potável no planeta.
Atualmente, 72% da cobertura terrestre é alvo de um uso de sociedades e até 33% é destinado a produção de alimentos e energia.
Mas, ao mesmo tempo que a produção ganha uma nova dimensão, os cientistas alertam que o desperdício de alimentos aumentou em mais de 40% desde 1961 e hoje está acima de 25% de toda a produção. Enquanto isso, o consumo de carnes e óleos dobrou desde os anos 60.
Ou seja, o planeta está usando mais terras, mais água, mais fertilizantes para um consumo que desperdiça cada vez mais e baseado em uma produção
o insustentável.
Impacto
Com tal expansão, a constatação dos cientistas é de que, hoje, 25% das terras no mundo estão ameaçadas de degradação e a população mais vulnerável ao impacto disso será a mais pobre. Atualmente, 500 milhões de pessoas vivem em áreas que passam por desertificação, 300% acima dos números existentes em 1961.
O desafio, porém, é como lidar com tal cenário, num ambiente de pressão cada vez maior para aumentar a produção de alimentos e do próprio clima.
Um dos fatores seria a pressão econômica, que poderia ampliar desafios ambientais, levando a uma maior conversão de ecossistemas naturais em terra aráveis. Mas o informe alerta que o aquecimento global já é um desafio real para a produção de alimentos.
De acordo com o rascunho do informe, mudanças climáticas irão criar um estresse adicional sobre as terras, exacerbando riscos relacionados com desertificação, degradação de terras aráveis e segurança alimentar.
De acordo com os cientistas, o aumento da temperatura terrestre foi de 1,4 graus Celsius desde 1850, contra uma média para o planeta de 0,87 grau. A tendência, portanto, deve continuar.
A intensidade de eventos climáticos extremos também aumentou e a previsão é de que as ondas de calor serão mais frequentes, mais intensas e mais longas. Uma das previsões é de que a seca pode se ampliar em regiões como o sul da Amazônia.
Assim, a constatação é que mudanças climáticas exacerbam degradação de terras e até mudando rotas de ciclones e ciclos de chuva.
Fome
Para os cientistas, as mudanças climáticas e a degradação de terras atuam como "multiplicadores de ameaças" para vidas já precárias, deixando essas populações vulnerável para eventos climáticos extremos. A consequência será será um aumento da pobreza e insegurança alimentar.
Em algumas áreas, a produção de milho, trigo e algodão já estão sofrendo, além da queda de pastagem. Também há o risco de uma queda de produtividade de certos cultivos em áreas tropicais.
Se para diversos países, a quebra de safras pode resultar em um colapso do PIB, a outra faceta de tal tendência será o aumento no preço dos alimentos. Uma vez mais, serão os pobres que mais sofrerão.
Uma das previsões chega a apontar para o aumento do preço médio de cereais em 29% até 2050, justamente por conta das mudanças climáticas.
Segundo o rascunho do informe, a "estabilidade do abastecimento de alimentos deve cair" por conta da magnitude e frequências de eventos extremos, afetando as cadeias alimentares pelo mundo.
O que também se constata é um ciclo vicioso. Quanto mais a agricultura atual pressiona o clima, mais os efeitos ambientais acabam voltando a afetar a capacidade de produção de alimentos.
O informe, por exemplo, alerta que existe um risco real de que as mudanças projetadas de uso de terras vão continuar a elevar as temperaturas no século 21, justamente ao tentar produzir para uma população cada vez maior.
A própria desertificação gerada pelo modelo agrícola e as emissões de CO2 por conta da atual exploração de terras acabarão exacerbando ainda mais as mudanças climáticas que, por sua vez, voltarão a afetar a agricultura.
Para os cientistas, o risco futuro de mudanças climáticas não depende apenas da elevação das temperaturas, mas como populações, o consumo de alimentos e o uso de terras vão evoluir.
Os mais ricos e aquela parcela da população com mais tecnologia resistirão melhor. Mas os demais ameaçam ver suas vidas ainda mais fragilizadas.
Novas dietas
Para os cientistas, não existem dúvidas: medidas precisam ser adotadas por governos para rever o atual modelo de produção de alimentos, tornando o campo mais produtivo e mais sustentável.
O informe, porém, deixa claro que apenas reformar o campo não seria suficiente. No setor do consumo, os especialistas sugerem medidas para incentivar dietas mais equilibradas, mais saudáveis, com políticas para diversificar o consumo de alimentos. Isso, segundo eles, aumentaria a resistência às mudanças climáticas.
Para que esse consumo sofra uma mudança, a sugestão é de que governos implementem políticas para diversificar o abastecimento de alimentos nas escolas, além de incentivos para seguro saúde e campanhas de conscientização para mudar hábitos.
Ao aumentar o consumo de frutas, grãos e legumes, sociedades estariam abrindo uma oportunidade real para reduzir emissões de CO2.
Outra recomendação é reduzir o desperdício, tanto na produção, como no transporte e no consumo final.
Juntas, as mudanças de dietas e redução de perdas na produção poderiam liberar 5,8 milhões de quilômetros quadrados de terras.
Etanol
Outra recomendação do documento se refere à produção de bioenergia, principalmente com o avanço de cultivos em diversas partes do mundo. De forma pontual, o uso de energia a partir de produção agrícola pode fazer sentido e até ter um impacto positivo. Mas, para os cientistas, uma produção em larga escala coloca pressão extra sobre o uso de terras e aumenta a concorrência pela água.
Portanto, o informe sugere que deva haver um limite para o recurso ao etanol e outras alternativas. Caso contrário, a proliferação de amplas áreas de monocultura para bioenergia pode aprofundar os desafios climáticos para o planeta.
"O uso generalizado de vários milhões de quilômetros quadrados podem afetar o desenvolvimento sustentável com o aumento de riscos, potencialmente consequências irreversíveis, para segurança alimentar, desertificação e degradação de terras", alertam.
Na avaliação do grupo, a produção de biomassas em monoculturas, irrigadas e com fertilizantes pode levar à degradação dos solos.
Área de desmatamento em Porto Seguro, regiao sul da Bahia Diego Padgurschi – 17.mai.2017/Folhapress
Mais regulação
No rascunho do documento que é, no fundo, uma proposta de uma nova forma de pensar o abastecimentos de alimentos no planeta, os especialistas deixam claro que cabe aos governos uma ação decisiva para promover essa transformação.
A combinação de pressões vindas de variação climática, mudanças climáticas geradas pelo homem e mudanças no uso da terra representariam uma ameaça de pobreza e contribuiria para "o aumento de fome e doenças".
A recomendação é para que haja maior regulação sobre a forma de produzir e do uso da terra para proteger pessoas e solos. Políticas públicas, portanto, ajudariam a resistir à instabilidade.
Com a meta de garantir a segurança alimentar e o bem estar, os cientistas sugerem políticas para frear a degradação dos solos, como medidas para incentivar a gestão de terras.
Uma das opções seria por meio da diversificação do sistema de produção alimentar, considerado como uma "estratégia chave" para reduzir riscos gerados pelas mudanças climáticas. Também se pede uma produção mais eficiente.
Os cientistas não escondem que tais transformações na agricultura vão exigir maior financiamento, medidas de proteção social a quem está no campo e mesmo esquemas de seguro de saúde. Mas eles acreditam que essas medidas podem "reduzir de forma importante a vulnerabilidade de humanos às mudanças climáticas".
Outra recomendação para ajudar na conservação é ainda a de dar mais poder e acesso às terras a grupos marginalizados ou minorias, como indígenas e mulheres. Isso seria uma forma de reduzir a pobreza e também criar maior resistência das comunidades às mudanças climáticas. Para que isso consiga ser obtido, o maior envolvimento de populações locais nos debates sobre uso da terra e seu monitoramento precisa ocorrer.
Segundo o rascunho do documento, a aposta na conservação e gestão sustentável de terras tem retorno. Para cada dólar investido em gestão sustentável da solos, de 3 a 6 dólares seriam em termos para a economia, beneficiando inclusive a comunidade global.
Mas os cientistas também alertam que, hoje, políticas que acentuam a pobreza e degradação são "barreiras" para um desenvolvimento mais resiliente da sociedade. Uma ação poderia evitar vulnerabilidade de "milhões de pessoas à degradação, desertificação e fome".
Para eles, o custo da inação supera o custo da ação, inclusive para a estabilidade e prosperidade econômica.
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