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Jamil Chade

Brasil ameaça se transformar em um "país insustentável" até 2030

Jamil Chade

24/07/2019 11h45

2.fev.2013 – Há dez anos, o governo federal lançava em Guaribas, no sul do Piauí, o Programa Fome Zero, com o objetivo de erradicar a miséria (AGÊNCIA BRASIL)

 

 

GENEBRA – O Brasil caminha para ser um país insustentável, mais desigual e mais degradado nos próximos dez anos, se as políticas sociais e ambientais atuais forem mantidas.

Essa é a principal conclusão de um informe apresentado pela sociedade civil ao secretário-geral da ONU, Antônio Guterrez, com um mapa da fome, da pobreza, educação, saneamento e do impacto ambiental no país.

Segundo seus autores, o documento "indica a magnitude dos desafios do Brasil, cujas políticas para promover a igualdade e o acesso à justiça social e ambiental vêm perdendo status, orçamento ou têm foram simplesmente eliminados nos últimos seis meses".

O mapeamento "mostra um rápido desmantelamento dos programas estratégicos para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, alimentado por políticas ultraliberais, elitistas e ineficazes que aprofundam a crise sócio-econômica que, por sua vez, é usada para justificar a degradação mental ambiental e a agressão social".

Sob o governo de Michel Temer, o Brasil havia se comprometido a apresentar em 2019 um informe sobre seus avanços para atingir as metas da ONU de desenvolvimento sustentável até 2030. Mas o governo de Jair Bolsonaro desistiu de passar pela sabatina, alegando que não iria apresentar dados de uma gestão passada.

Mesmo assim, a sociedade civil manteve o exercício e entregou para a ONU sua própria avaliação. A brasileira Alessandra Nilo, presidente da ONG Gestos de Pernambuco e uma das lideranças do Grupo da Sociedade Civil para a Agenda 2030 – GT Agenda 2030, foi recebida por Guterres e o entregou o informe.

Muitos dos dados refletem a situação até 2018. Mas os especialistas também avaliam o impacto das primeiras medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro, em seus seis primeiros meses no comando.

"O governo federal ignora leis e evidências, insistindo em soluções simplistas e equivocadas para desafios complexos, inclusive reorientando a política externa ao ponto de alienar aliados geopolíticos históricos", alertaram as ongs.

O levantamento foi realizado por uma rede de quase 40 entidades, organizações, fundações e movimentos sociais que integram o GT analisam a situação do país diante do cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.

O grupo inclui o Instituto Igarapé, Action Aid, Inesc, World Animal Protection, Universidade de Brasília e Article 19, entre outros. "Os dados aqui apresentados são de fontes oficiais, revelando uma tendência a evitar o aumento das desigualdades e da violência, o que, se não for revertido, fará do Brasil um país insustentável até 2030", apontam.

Pobreza

Uma das constatações mais preocupantes se refere à meta estabelecida de acabar com a pobreza até 2030. "Com um aumento rápido da pobreza desde 2014, o Brasil não será capaz de erradicar a pobreza ate 2030", lamenta o informe.

De acordo com os especialistas, não se trata apenas de uma questão de renda, mas também de acesso a serviços públicos.

Se em 2016 25,7% dos brasileiros estava abaixo da linha da pobrea, essa taxa subiu para 26,5% em 2017. Em números absolutos, isso representa um aumento de 52,8 milhões para 54,8 milhões.

Já a pobreza extrema, neste mesmo período, passou de 6,6% para 7,4%. O cálculo se refere a quem ganha menos de US$ 1,90 por dia. Em termos absolutos, o aumento foi de 13,5 milhões para 15,2 milhões de brasileiros.

Parte da explicação foi o aumento do exército de desempregados, que passou de 6,7 milhões de pessoas em 2014 para 13,2 milhões em 2018. Para a sociedade civil, o fim da política de recuperação do salário mínimo, estabelecida em 2019, deve contribuir para aprofundar essa crise.

Não por acaso, um dos alertas se refere aos "grandes retrocessos" no combate à pobreza e ao "desmantelamento das políticas de segurança alimentar e nutricional, e a redução orçamentária em programas como o Programa de Aquisição de Alimentos para Agricultura Familiar e o Programa Cisterna (Primeira e Segunda Águas)".

"Os cortes em tais programas têm vários efeitos marcantes sobre as populações mais vulneráveis. Entre os povos indígenas, os quilombolas, as condições de subnutrição das comunidades transnacionais são agravadas pelos crescentes ataques aos seus direitos territoriais e sociais, no que diz respeito à demarcação de terras e ao desmembramento da Fundação Nacional do Índio (Funai)", alertam.

O grupo ainda destaca como o novo governo eliminou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). "Essa ação viola o princípio democrático da participação social e ataca um meio fundamental para o direito humano à alimentação", disse.

O levantamento constata que, "desde 2015, o Brasil se distanciou da meta de erradicar a fome" e que a redução das taxas de desnutrição (magreza e magreza acentuada) em crianças de 0 a 5 anos tem parado.

 

Em Genebra, ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, participa de reuniões na OMS. Maio 2019/ Jamil Chade

Saúde

Outro alerta se refere à situação da saúde no Brasil. "A retomada do registro de sarampo autóctone, após 18 anos de ausência, mostra a falta de cobertura vacinal brasileira, que atingiu em 2017 o menor índice em mais de 16 anos", dizem. Isso, segundo eles, demonstra também o risco de ressurgimento de doenças transmissíveis consideradas ultrapassadas e o surgimento de outras.

Os dados também revelam o aumento da mortalidade materna em 2016, predominantemente nas regiões Norte e Nordeste do país, especialmente entre as mulheres que vivem em áreas rurais e comunidades mais pobres. A mortalidade infantil também aumentou, com taxas mais elevadas nas regiões mais pobres.

No caso da Aids, o estudo também destaca como há hoje uma "crise na resposta brasileira ao HIV, que antes era um exemplo global". Entre 2016 e 2018, os casos de malária aumentaram em 50% e, entre 2017 e 2018, os casos de febre amarela dobraram.

"Desde 2014, quase 3 milhões de pessoas perderam seus planos de saúde devido ao desemprego", constatou o estudo.

Educação

O documento também destaca a incapacidade de o país avançar com o Plano Nacional de Educação. "Até 2018, apenas 30% das metas e estratégias previstas para 2015, 2016, 2017 ou 2018 apresentaram progresso, e nenhuma delas foi plenamente atingida", alertam.

"Em 2019, não houve avanços significativos nesse status, e o início do ano foi marcado pelo avanço da privatização da educação e da proposta de educação pública à distância para o ensino fundamental, atendendo aos interesses dos grupos econômicos que oferecem esses serviços", disse.

A meta de universalização da matrícula escolar para crianças de 4 e 5 anos, fixada em 100% para 2016, está atrasada.

De 2014 a 2017, o grau de matrícula escolar das crianças de 0 a 3 anos aumentou de 29,6% para 34,1%. "Será necessário um maior investimento para atingir a meta de 50% até 2024", indicou.

"Sem políticas estruturadas, com o crescente fechamento e empobrecimento das escolas e o desmantelamento de programas como o "Brasil Alfabetizado", as metas para a alfabetização (100%), o analfabetismo funcional na população de 15-64 (14%), para as vagas oferecidas no ensino técnico médio, para a tendência ou conclusão de cursos de graduação entre a população de 18 a 24 anos e para a participação da rede pública na expansão de matrículas (40%) também não serão realizadas", constata.

Igualdade de gênero

A sociedade civil também se mostra preocupada com as metas sobre igualdade de gênero, principalmente depois que o governo passou a instrumentalizar a "ideologia de gênero" como argumento para evitar a implementação de políticas de promoção da igualdade de gênero.

Ao final de 2018, uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência, e na maioria dos casos o agressor era conhecido pela vítima (76,4% dos casos).
Em 2018, havia 16.424 denúncias de estupro de crianças e adolescentes menores de 19 anos. Entre 2015 e 2017, 127 mulheres e meninas foram sido mortas no Brasil por causa da exposição online.

As informações sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos são insuficientes e dificultam o acesso aos direitos. Outro revés é a retirada pelo Ministério da Saúde de uma cartilha sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis voltada para a saúde de homens transexuais.

O investimento na autonomia econômica da mulher rural tem diminuído gradualmente. "O investimento do governo federal na iniciativa "Apoio à Organização Econômica e Promoção da Cidadania das Mulheres Rurais" foi de R$ 32 milhões em 2014; R$ 3, 5 milhões em 2018, e apenas R$ 500 mil em 2019″, disse.

Saneamento

Um desafio longe de uma solução é a questão do saneamento. " Em média, 83,47% da população brasileira recebe serviço de água, mas apenas 58,04% tem coleta de esgoto e 46% tratamento total do esgoto gerado", indica o estudo.

As diferenças regionais são marcantes: no Norte, apenas 24,77% do esgoto é coletado e apenas 22,58% do esgoto total gerado é tratado. A taxa de hospitalização por doenças transmitidas pela água em São Caetano do Sul (SP), no Sudeste, é de 23,3 por 100.000 habitantes, enquanto em Barcarena (PA), no Norte, a taxa é de 216,81 por 100.000 habitantes, quase 10 vezes maior.

Hoje, 40 milhões de pessoas não têm acesso a água potável, e mais de 100 milhões não têm rede de esgoto. No entanto, para cada 100 litros de água captada e tratada, mais de 38 litros são perdidos nas tubulações no processo de distribuição.

58,4% dos municípios não possuem um Plano Municipal de Saneamento. "Ao mesmo tempo, a proposta da Medida Provisória nº 844, que implementa a convocação pública para a concorrência entre promotores privados e públicos, é criticada pela alegação de que tal mecanismo poderia perturbar o atual sistema de subsídios cruzados e levar a iniciativa privada a se interessar pelos municípios "excedentes", deixando os locais mais difíceis e custosos para os prestadores públicos regionais", alertaram.

Uma projeção feita pela Confederação Nacional da Indústria no final de 2015 ainda mostrou que, se os investimentos fossem mantidos como estão, o Brasil só alcançaria o saneamento global em 2054.

"Para agravar a situação, os investimentos da União no setor têm sido reduzidos nos últimos anos", constatam.

Entre 2014 e 2017, as empresas fornecedoras de 1.396 municípios detectaram o uso de 27 agrotóxicos que devem ser testados previamente de acordo com a legislação.

Em 2017, 110 mil quilômetros de rios brasileiros estavam poluídos e 83 mil quilômetros tiveram a captação de água para abastecimento público proibida, dada a grave poluição que o processo de captação geral. "Vale ressaltar que o Brasil representa mais de 12% da água doce do mundo", destacam.

Trabalho

O estudo também alerta para o impacto do desmantelamento das políticas sociais, associado à reforma trabalhista, no acesso ao trabalho decente e no aumento das desigualdades no Brasil.

Segundo eles, o PIB brasileiro cresceu pouco acima de 1% durante 2017 e 2018, e caiu 0,2% no primeiro trimestre de 2019, enquanto a renda per capita permaneceu a mesma. "A reforma trabalhista não gerou crescimento econômico como prometido", insistem.

2Há também o enfraquecimento das instituições públicas e das organizações sindicais: a eliminação da Justiça do Trabalho, o estabelecimento de limites e a redução do investimento de recursos para a fiscalização e a fragilização dos sindicatos", alertaram.

A taxa de 12,7% de desemprego no primeiro trimestre de 2019 foi superior à do trimestre anterior (11,6%) e respondeu por 13,4 milhões de desempregados. "Houve um aumento na informalidade, terceirização, trabalho intermitente e trabalhadores autônomos, juntamente com discriminação racial e de gênero no mercado de trabalho, especialmente nos trabalhadores negros", apontam.

Em 2019, 26% dos jovens entre 17 e 24 anos estavam desempregados e, em 2018, 23% dos jovens entre 15 e 24 não estudavam nem trabalhavam. O desemprego dos jovens atingiu a taxa mais elevada em 27 anos no final de 2017: quase 30%, o dobro da taxa média mundial. Há ainda 2,4 milhões de crianças no Brasil em situação de trabalho compulsório e forçado ou similar à condição de escravidão.

Desigualdade

O levantamento também constata que, no atual ritmo, o Brasil será um país mais desigual em 2030. "O crescimento da renda da população mais pobre tem sido em declínio desde 2015", indicam.

"Em números absolutos, a cota de pessoas que vivem abaixo de 50% da renda média aumentou de 13,5 milhões em 2016 para 15,2 milhões em 2017", diz o estudo.

A concentração de renda e a desigualdade salarial cresce. A proporção mais pobre do país recebeu uma renda em média 30,3 vezes menor que a média da camada mais elevada. Para a Oxfam, "o Brasil retrocedeu 17 anos em relação aos investimentos sociais para combater as desigualdades".

Constata-se, ainda, um déficit habitacional crescente entre 2016 e 2017, com aumento de 3,1%. A principal causa é justamente a queda na renda das famílias mais pobres.

Em Genebra, Raoni se reúne com autoridades locais para pedir apoio à demarcação de terras. Foto: Jamil Chade

Florestas

Em termos ambientais, o estudo aponta que o Brasil não deve conseguir atingir as metas, caso mantenha as atuais tendências.

"A Floresta Amazônica está permanentemente ameaçada", diz o texto. Mas a constatação é que o ritmo do desmatamento observado nos primeiros quinze dias de maio de 2019 foi três vezes maior do que no mesmo período de maio de 2018.

"O cenário já dramático tomou a dimensão de uma grande crise, em 2019, quando o novo governo estava questionando e desmantelando explicitamente a agenda de mudanças climáticas", alertaram.

"Como sede da maior floresta tropical e da maior biodiversidade do mundo, a relevância do Brasil para o clima global é central", diz. No entanto, é o 7º país que mais contribui para o aquecimento global, emitindo mais de 2 bilhões de toneladas de CO2 por ano. "O desmatamento é a principal causa dessas emissões, seguido pela agricultura, pecuária e energia", diz.

Preocupa também o desmantelamento das instituições dedicadas ao assunto. A Secretaria para o Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia e suas divisões Clima, Novas Energias e Recursos Energéticos Renováveis e Desenvolvimento Sustentável foram dissolvidos. Além disso, a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestais foi substituída pela Secretaria de Florestas e Desenvolvimento. "Até maio de 2019, o órgão consultivo especial que deveria estar pronto para abordar as políticas climáticas ainda não tinha sido criado", disse.

"O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirma publicamente que a mudança climática é uma questão ideológica, um "dogma" ou complô da esquerda para impedir o crescimento econômico", lembram as entidades. "Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, questiona se a atividade antrópica afeta o clima e afirma que os problemas fazem parte de um ciclo natural dos posicionamentos da Terra", completam.

O cenário se contrasta com as metas assumidas pelo Brasil para reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 (comparado com o nível de emissão em 2005), aumentar a participação da bioenergia na matriz energética para até 18% até 2030, e restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030.

As modificações no Código Florestal, com o objetivo de flexibilizar as políticas fiscais para a demarcação de reservas de conservação em terras privadas, implicarão na não recuperação de 4 a 5 milhões de hectares de terra.

Citando ainda o Instituto Socioambiental, o estudo revela que o desmatamento das terras indígenas aumentou 134% entre agosto de 2017 e julho de 2018. E segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, somente em maio de 2019, uma área de 739,68 km2 foi desmatada e, de março a maio de 2019, uma área de 1.102,57 km2 – a maioria equivalente à da cidade de São Paulo – foi desmatada.

Ao mesmo tempo, entre 2013 a 2018, a extensão de áreas transformadas em desertos aumentou em 482%, atingindo 35 milhões de pessoas em 11 estados diferentes.

 

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)