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Jamil Chade

Europeus não confiam em compromissos ambientais assumidos pelo Brasil

Jamil Chade

23/07/2019 12h40

Diante de Parlamento Europeu, deputados de esquerda protestam contra acordo com Mercosul

 

"Acordo comercial sozinho não vai salvar a Amazônia", responde a comissária de Comércio da UE

 

GENEBRA – Num primeiro debate no Parlamento Europeu sobre a aprovação do acordo comercial entre UE e o Mercosul, deputados deixaram claro nesta terça-feira que não confiam nos compromissos assumidos pelo governo brasileiro no que se refere à proteção da Amazônia e questionam se salvaguardas não poderiam ser usadas contra produtos brasileiros.

A reunião serviu para confirmar que temas ambientais serão fundamentais numa eventual ratificação do acordo e que os deputados estarão acompanhando de perto os dados sobre o desmatamento no Brasil.

Em resposta, a comissária de Comércio da Europa, Cecilia Malstrom, foi clara: "um acordo comercial sozinho não vai salvar a Amazônia".

Depois de 20 anos de negociações, os dois blocos fecharam um acordo há poucas semanas. Mas, para entrar em vigor, ainda precisará passar por parlamentos nacionais e, depois, pelo Parlamento Europeu.

O processo pode levar até dois anos. Mas no primeiro debate entre a negociadora e os deputados, ficou evidente que o capítulo ambiental permeará todo o debate. Kathleen Van Brempt, deputada do grupo social-democrata, alertou: "não se pode fechar os olhos" sobre a situação ambiental no Brasil. "O desmatamento está ocorrendo".

Para ela, a UE precisa esclarecer o que será feito para garantir que os compromissos assumidos pelo Brasil no setor ambiental serão respeitados.

Botão Vermelho

Sugerindo até mesmo o uso de um "botão vermelho" para frear um acordo caso assuntos ambientais sejam violados, a parlamentar insistiu que o assunto não desaparecerá.

Alguns, de fato, levantaram a possibilidade de se usar salvaguardar contra produtos brasileiros caso haja uma violação de aspectos ambientais do acordo, o que foi rejeitado por Malmstrom, que insistiu que o recurso apenas existe para frear importações que violem cotas ou que acabem afetando de forma injusta produtores locais. "O botão vermelho é para importação", disse.

Os deputados também destacaram como 600 cientistas e inúmeros grupos indígenas questionaram o acordo. "É irônico que estamos ouvindo falar do corte de florestas e, ao mesmo tempo, facilitando a entrada de produtos para a Europa", declarou o deputado conservador Seán Kelly. Ele, porém, não esconde que está preocupado com a concorrência da carne brasileira para os produtores europeus.

A deputada ecologista, Anna Cavazzini, lamentou o fato de a UE não ter sido mais ambiciosa no aspecto ambiental. "Foi estabelecido que produtos de áreas desmatadas não entrarão na Europa, como a soja. Mas temos certeza que são parados na fronteira?", questionou.

A deputada Inmaculada Rodrigues-Pinero também fez seu alerta de que o comércio "não pode significar corte de florestas". Ela ainda destaca para o compromisso dos governos que fecharam o acordo a dar um papel real para a sociedade civil no monitoramento do acordo.

Helmut Scholz, do grupo de esquerda, também apontou para os riscos que representa o acordo no setor da participação civil. "Sabemos da realidade política no Brasil", alertou. Ele questiona se representantes de grupos indígenas e ongs de fato independentes terão acesso à participação.

Nos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro desmontou os comitês e órgãos com a participação da sociedade civil.

Cecilia Malmstrom, comissária de Comércio da UE, tentou sair em defesa do acordo. Apesar de um tratado não poder salvar a floresta, ela acredita que a UE pode ajudar ao exigir que compromissos sejam assinados. "Se sairmos do acordo, seria melhor?" rebateu. "Ou seria melhor ter acordos vinculantes, como o de salvar o Amazonas?", disse.

Ele lembrou que, durante as eleições presidenciais no Brasil, existiam "rumores" de que o país sairia do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas. "Mas eles não se repetiram e recebemos sinais claros de que o Brasil não vai sair", explicou.

Segundo ela, o tratado com o Mercosul transforma o Acordo de Paris em uma obrigação legal. "Existem forças no mundo que querem ir para outro lado", alertou. Com o acordo comercial, segundo ela, o tratado climático passou a ser um compromisso legal vinculante. "Ancoramos Paris", disse.

Sua avaliação é de que o acordo comercial pode ser uma força para o bem e servir para pressionar o Brasil. "Não podemos mandar a polícia. Mas podemos tomar passos", disse a comissária, lembrando como questões trabalhistas na Coreia do Sul levaram à necessidade de que medidas fossem tomadas. Malmstrom, ainda assim, indicou que não houve um consenso na Europa sobre o uso de sanções contra países.

Entre os deputados europeus, vários questionaram justamente a falta de capacidade da UE em garantir que o Brasil siga seus compromissos, como Aurore Lalucq, do grupo de esquerda.

O deputado conservador polonês, Witold Jan Waszczykowski, foi ainda mais direto. "Se não existem instrumentos para aplicar padrões, só podemos destruir a reputação do Brasil se algum problema ocorrer?", questionou.

Comércio

Não faltaram ainda dúvidas sobre como parar produtos brasileiros que estejam usando agrotóxicos proibidos na Europa, além de preocupações sobre setores específicos como frango, etanol e carnes, além de citros.

Mas Malmstrom insistiu sobre as vantagens econômicas e política do acordo. Para ela, o tratado é "equilibrado" e tem uma "importância geopolítica". Segundo a negociadora chefe, ao ser o primeiro bloco a fechar um acordo com o Mercosul, a Europa tem uma vantagem comercial grande ao entrar com seus produtos com tarifas mais baixas.

A comissária ainda prevê uma economia de 4 bilhões de euros em taxas para os exportadores europeus, um valor oito vezes superior ao que foi obtido no acordo com o Canadá.

Ela também garantiu que as sensibilidades de certos setores europeus serão protegidas. Ao ser questionada sobre a entrada de frango brasileiro e o risco para os produtores europeus, a comissária deixou escapar: "o que demos a eles (Mercosul) é muito pouco".

No Brasil, o governo comemorou o acordo, inclusive no setor de exportação de carnes.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)