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Jamil Chade

Uma sociedade que queima livros terá sua liberdade sufocada pela fumaça

Jamil Chade

17/07/2019 06h27

 

GENEBRA – John Milton, em seu livro Areopagitica, de 1644, foi duro: "Aquele que mata um homem, mata uma criatura, a imagem de Deus. Mas aquele que destrói um bom livro, mata a razão".

Silenciar escritores e queimar livros não são práticas novas. Assim fez o imperador chinês Qin Shi Huang, dois séculos antes de Cristo. Joseph Goebbels, em 1933, condenou às chamas autores como Heinrich Mann e Erich Kästner. "Não à decadência e corrupção moral", bradou, antes de uma cerimônia de queima de obras.

Na Índia, em 2010, ou na Hungria em 2013, grupos de extrema-direita e partidos populistas também promoveram queimas de livros. Cada um por seus motivos. Cada qual escolhendo seus inimigos.

O fogo que arde pode, para alguns poucos, parecer lógico na defesa de seus supostos valores. Mas um sociedade que queima livros, terá sua liberdade sufocada pela própria fumaça daquelas fogueiras.

Hoje, os alvos foram Sergio Abranches e Miriam Leitão, que tiveram suas participações canceladas na Feira do Livro de Jaraguá do Sul. O veto era pelo "viés ideológico" dos convidados, conforme a petição dos próprios moradores do local.

O prefeito da cidade tentou explicar a reação. "Em Jaraguá do Sul, não cai bem a esquerda ou a extrema esquerda perante a nossa população, que é um povo tão trabalhador", disse, lembrando que "é a favor da democracia".

Alguns dias antes, Glenn Greenwald foi alvo de um protesto em Paraty em outra feira literária, eventos que parecem estar ganhando o inusitado papel de trincheiras.

Rapidamente, nos tribunais das redes sociais, não foram poucos os aplausos à iniciativa de vetar e ameaçar escritores e jornalistas em eventos destinados a empurrar as fronteiras da liberdade de pensamento.

Bradbury tinha razão ao colocar num de seus personagens frases esclarecedoras. "Um livro é uma arma carregada na casa vizinha", escreveu. "Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?".

Na sociedade que ele descrevia, a crítica e a liberdade de pensamento tinham se transformado em crimes. Sorte nossa que não era no Brasil de 2019…

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)