ONU denuncia governo Maduro por execuções e máquina de repressão
Investigação ainda conclui que Caracas usa programas sociais para atender apenas a aliados do regime, abusa sexualmente de prisioneiros, manipula corpos executados, promove uma repressão orquestrada e estaria por trás de milhares de mortes desde 2015. Se nada mudar, um êxodo ainda maior de refugiados ocorrerá.
GENEBRA – O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos denuncia o governo de Nicolas Maduro por "milhares" de execuções sumárias e violações graves de direitos humanos. Esse é o resultado da primeira investigação independente realizada de fato sobre a Venezuela. Os dados serão apresentados oficialmente nesta sexta-feira, em Genebra, e o governo de Caracas promete dar uma dura resposta.
A investigação revela ainda tortura, o uso de grupos paramilitares e a manipulação de programas sociais, além de quase 800 presos políticos no país.
O escritório da ONU, comandado pela ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, viajou até Caracas há poucas semanas e o governo deu sinais de que poderia liberar presos políticos. Mas, logo após o final da viagem, e prisão e morte de um dos opositores reabriu a crise e as dúvidas sobre a sinceridade de Maduro ao dizer que estaria disposto a manter o diálogo.
A ONU, agora, pede que o governo da Venezuela tome medidas "imediatas e concretas para colocar fim e remediar as graves violações dos direitos económicos, sociais, civis, políticos e culturais documentadas no país".
Se a situação não melhorar, o fluxo sem precedentes de migrantes e refugiados venezuelanos continuará, e as condições de vida dos que restam irão piorar", alerta a entidade.
De acordo com a investigação, o governo de Nicolas Maduro colocou em prática uma estrutura para "neutralizar, reprimir e criminalizar os opositores políticos e os críticos do governo". "Uma série de leis, políticas e práticas restringiu o espaço democrático, desmantelou o equilíbrio institucional e permitiu padrões de graves violações", aponta.
"O relatório também destaca o impacto do aprofundamento da crise econômica que tem deixado as pessoas sem os meios para cumprir seus direitos fundamentais à alimentação e à saúde", diz.
Com base em 558 entrevistas com vítimas e testemunhas de violações de direitos humanos e da deterioração da situação econômica na Venezuela e em outros oito países, além de outras fontes, o relatório abrange o período de janeiro de 2018 a maio de 2019.
Assassinatos
O relatório detalha como as "instituições do Estado têm sido progressivamente militarizadas ao longo da última década". "As forças civis e militares foram supostamente responsáveis por detenções arbitrárias; maus-tratos e tortura de pessoas críticas do governo e seus familiares; violência sexual e de gênero na detenção e durante as visitas; e uso excessivo da força durante as manifestações", denunciaram.
"Grupos civis armados pró-governo, conhecidos como coletivos, têm contribuído para a deterioração da situação, exercendo controle social e ajudando a reprimir manifestações", destaca o informe, que revela detalhes de como essa milícias estariam operando em nome do regime.
O Escritório de Direitos Humanos da ONU documentou 66 mortes durante protestos entre janeiro e maio de 2019, 52 atribuíveis a forças de segurança do governo ou coletivos.
"A incidência de supostas execuções extrajudiciais pelas forças de segurança, particularmente as forças especiais (FAES), no contexto das operações de segurança tem sido chocantemente alta", afirma o relatório.
A ONU indicou que "documentou casos de execuções extrajudiciais pelas forças de segurança no contexto de operações de segurança conduzidas em bairros pobres". "Desde o início de 2018, as operações de segurança da FAES, criada para combater o tráfico de droga e as organizações criminosas, substituíram as operações de segurança denominadas "Operações de Libertação do Povo" realizadas entre 2015 e 2017″, explicaram.
Mas, para a ONU, os entrevistados que conversaram com os autores da investigação "sempre se referiram à FAES como um "esquadrão da morte" ou "grupo de extermínio". "As ONGs relataram que a FAES é responsável por centenas de assassinatos", aponta a entidade.
Familiares de 20 jovens mortos pela FAES entre junho de 2018 e abril de 2019 prestaram depoimentos. "Todos descreveram um modus operandi semelhante. A FAES chegaria em caminhonetes pretas sem placas de matrícula e bloqueando pontos de acesso na área. Eles estavam vestidos de preto, sem qualquer identificação pessoal, com balaclavas cobrindo seus rostos", disseram.
"Também levavam armas compridas. As famílias das vítimas descreveram a FAES invadindo suas casas, levando seus pertences e exercendo violência de gênero contra mulheres e meninas, incluindo nudez forçada", diz o informe. "Eles separavam os homens jovens de outros membros da família antes de atirar neles. De acordo com seus familiares, quase todas as vítimas tinham um ou mais tiros no peito", aponta.
"Em todos os casos, as testemunhas relataram como a FAES manipulou a cena do crime e as provas. Eles plantavam armas e drogas e disparavam suas armas contra as paredes ou no ar para sugerir um confronto e mostrar que a vítima tinha "resistido à autoridade". Em muitos casos, a FAES levou as vítimas ao hospital mesmo que já estivessem mortas, aparentemente com a intenção de manipular os corpos e modificar a cena do crime", indicaram.
"Em alguns casos, as autoridades declararam que as vítimas eram criminosas antes da conclusão de uma investigação formal", destaca.
Em 2018, o governo registrou 5.287 assassinatos, supostamente por "resistência à autoridade", durante tais operações. Entre 1º de janeiro e 19 de maio deste ano, mais 1.569 pessoas foram mortas, segundo dados do governo. Outras fontes sugerem que os números podem ser muito maiores.
A ONG "Observatorio Venezolano de la Violência", por exemplo, registrou pelo menos 7.523 assassinatos nessa categoria. Entre 1º de janeiro e 19 de maio de 2019, o governo registrou 1.569 assassinatos por "resistência à autoridade". O OVV relatou pelo menos 2.124 desses assassinatos entre janeiro e maio de 2019. Informações analisadas pela ONU "sugerem que muitas dessas mortes podem constituir execuções extrajudiciais".
"Tendo em conta o perfil das vítimas, o modus operandi das operações de segurança e o fato de a FAES manter frequentemente uma presença nas comunidades após o fim da operação, a ONU receia que as autoridades possam estar utilizando a FAES e outras forças de segurança como instrumento para colocar medo na população e manter o controlo social", afirma a entidade.
"Milhares de pessoas, principalmente jovens, foram mortas em alegados confrontos com as forças do Estado durante os últimos anos. Existem motivos razoáveis para crer que muitas destas mortes constituem execuções extrajudiciais cometidas pelas forças de segurança, em especial pela FAES", denunciam.
"Estas mortes justificam uma investigação imediata para assegurar a responsabilização dos perpetradores e garantias de não recorrência", diz a ONU.
Prisão
O relatório também observa que, em 31 de maio de 2019, "793 pessoas estavam arbitrariamente privadas de liberdade, incluindo 58 mulheres, e que, até o momento, 22 deputados da Assembleia Nacional, incluindo seu presidente, foram privados de sua imunidade parlamentar".
De acordo com a ONG "Foro Penal Venezolano", pelo menos 15.045 pessoas foram detidas por motivos políticos entre janeiro de 2014 e maio de 2019. "Dessas, 527 foram detidas em 2018 e 2.091 entre janeiro e maio de 2019", disse. "A maioria deles foi detida no contexto de manifestações. Até 31 de maio de 2019, 793 pessoas estavam arbitrariamente privadas de liberdade, 1.437 pessoas haviam sido libertadas incondicionalmente e 8.598 haviam sido libertadas condicionalmente e ainda enfrentavam longos processos penais", indicou.
"Na maioria dos casos, mulheres e homens foram submetidos a uma ou mais formas de tortura ou tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante, incluindo choques elétricos, asfixia com sacos plásticos, embarque de água, espancamentos, violência sexual, privação de água e alimentos, posições de estresse e exposição a temperaturas extremas", aponta a investigação. "As forças de segurança e os serviços de informações recorrem regularmente a tais práticas para extrair informações", diz.
Uma das conclusões ainda do informe é de que mulheres detidas estariam sendo obrigadas a manter relações sexuais com policiais para que sejam protegidas dentro das prisões.
"Durante minha visita à Venezuela, pude ouvir em primeira mão os relatos de vítimas de violência do estado e suas demandas por justiça. Transmiti fielmente às autoridades competentes as suas vozes e as da sociedade civil, bem como as violações dos direitos humanos documentadas no presente relatório", declarou Bachelet.
Manipulação
Na avaliação da ONU, não existem dúvidas de que o embargo económico imposto pelos americanos aprofundou a crise social. Mas a entidade alerta que os problemas começaram antes de qualquer bloqueio, desmontando a tese de Maduro para se defender. Para a ONU, a responsabilidade pela crise é do governo.
"A má alocação de recursos, a corrupção, a falta de manutenção da infraestrutura pública e o grave subinvestimento resultaram em violações ao direito a um padrão de vida adequado relacionadas ao colapso dos serviços públicos, como transporte público, acesso à eletricidade, água e gás natural", disse.
Hoje, o salário mínimo é de apenas US$ 7,00, o que seria suficiente para atender a apenas 4% do valor da cesta básica de alimentos no país.
De acordo com a ONU, o principal programa de assistência alimentar "não satisfaz as necessidades nutricionais básicas". "O governo não demonstrou que utilizou todos os recursos à sua disposição para assegurar a realização progressiva do direito à alimentação, nem que não conseguiu obter assistência internacional para preencher as lacunas", disse.
Segundo a ONU, há uma escassez de 60 a 100% de medicamentos essenciais em quatro das principais cidades da Venezuela, incluindo Caracas. Algumas cidades não contam com contraceptivos e o número de gravidezes de adolescentes aumentou em 65% desde 2015.
Entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019, 1.557 pessoas morreram por falta de suprimentos nos hospitais. O governo ainda se recusa a publicar dados sobre a situação da saúde.
Segundo a investigação, o governo Maduro tem usado os programas sociais para atender apenas aqueles que continuam aliados ao regime. Cartões que dão acesso ao abastecimento também passaram a ter um controle partidário.
Mulheres que, em bairros mais pobres, protestam contra a falta de serviços também são excluídas de programas sociais. Muitas, assim, optam pelo silêncio.
Enquanto isso, a oposição passou a ser criminalizada. Médicos são demitidos ou presos se denunciam o sistema, professores tem seus salários cortados e familiares de opositores passaram a ser alvo de repressão.
Silêncio
Parte ainda da estratégia de repressão tem sido o silenciamento da imprensa. "Nos últimos anos, o governo tem tentado impor uma hegemonia de comunicação, impondo a sua própria versão dos acontecimentos e criando um ambiente que restringe a comunicação social independente", alertou a ONU.
"Esta situação continuou a piorar em 2018-2019. Dezenas de meios de comunicação impressos fecharam e o governo encerrou estações de rádio e proibiu canais de televisão", disse. "A detenção de jornalistas aumentou, incluindo jornalistas estrangeiros que foram expulsos ou abandonaram o país imediatamente após terem sido libertados. Centenas de jornalistas venezuelanos vivem agora no exílio", apontou a ONU.
"A Internet e as redes sociais tornaram-se o principal meio de comunicação e informação para a população, limitando ainda mais o acesso à informação independente para aqueles que não têm acesso à Internet. A velocidade da Internet está também a diminuir constantemente, inclusive devido à falta de investimento em infra-estruturas. Além disso, nos últimos anos, o governo tem bloqueado sites de notícias independentes e bloqueado regularmente as principais plataformas das redes sociais", denuncia a investigação.
A ONU ainda documentou uma série de casos de detenção arbitrária de pessoas por expressarem opiniões nas redes sociais. "Nos últimos 10 anos, a ONG "Espacio Público" registrou a detenção arbitrária e acusações criminais contra 55 pessoas para publicações nas redes sociais – 24 delas em 2018″, indicou.
Exodo
A ONU ainda se diz preocupada com o destino dos imigrantes e refugiados venezuelanos. Muitos seriam alvo de exploração sexual, violência e xenofobia, além de ter de pagar propinas para policiais venezuelanos para que os ajudem a fugir.
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