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Jamil Chade

Redes sociais ameaçam a democracia, alerta último cartunista do NYT

Jamil Chade

13/06/2019 04h00

 

GENEBRA – A "estupidez e mentiras" das redes sociais ameaçam a imprensa e a própria democracia. Quem soa o alerta é Patrick Chappatte, um dos chargistas mais celebrados da atualidade e que, até recentemente, publicava sua obra no jornal The New York Times.

Foi o suíço quem revelou, no início desta semana, que o NYT havia decidido colocar fim à seção de charges políticas e de opinião. A decisão ocorreu um mês e meio depois de o jornal veicular uma charge considerada antissemita.

Chappatte não era o autor do desenho, originalmente publicado pelo português António Moreira Antunes. A imagem mostrava Donald Trump sendo guiado pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, retratado na forma de um cachorro.

A charge gerou uma forte reação nas redes sociais e o jornal teve de publicar um texto criticando sua própria publicação e pedindo desculpas aos leitores.

O jornal garante que não foi esse recente episódio que levou a direção a optar por encerrar a seção de cartunistas e que essa decisão já tinha sido tomada antes dos acontecimentos. De fato, apenas a versão internacional do NYT traz charges, enquanto sua versão americana tradicionalmente não continha esse espaço.

Chappatte, porém, acabou sendo afetado e viu seu espaço ser suspenso. Nesta semana, ele escreveu em um texto em que alerta justamente para o papel das redes sociais.

"Temo que isso (o encerramento da seção) não seja só devido às charges, mas sim uma questão de jornalismo e de opinião de forma geral", disse. "Estamos em um mundo onde multidões moralistas se reúnem nas redes sociais e criam tempestades, que atingem as redações de forma arrasadora", escreveu Chappatte.

Democracia

Ao blog, o suíço que mora em Genebra deixou claro que está preocupado justamente com o poder das redes sociais e seu impacto para a democracia. "Meios de comunicação começam a se curvar diante da pressão das mídia social", disse. Para ele, o que temos hoje é um cenário em que são essas redes as reais detentoras do poder.

Chappatte deixa claro que o advento das plataformas sociais permitiu que cartunistas de países que vivem regimes autoritários pudessem, no exílio, continuar seu trabalho e influenciar até mesmo acontecimentos nos locais onde eles já não podem voltar.

Mas essas redes também representam uma ameaça, inclusive para as democracias. "Como sociedade, não estamos lidando com isso como adultos. Não parecemos estar preparados", disse.

"As novas mídias, sem uma curadoria profissional, são enormes ameaças ao discurso civilizado e à democracia", alertou. "Se hoje alguém se baseia por redes sociais, ouve estupidezes e mentiras", insistiu.


Multidões enfurecidas

Para ele, o papel do jornalista continua sendo o de "informar, analisar e colocar acontecimentos em perspectiva". Mas essa função estaria sendo minada por "multidões enfurecidas" e cabe aos jornais recuperar esse espaço.

O suíço conta como, diante desse poder raivoso das redes sociais, "todos se sentem rapidamente ofendidos". "Está difícil fazer sátira e ser irónico sobre o mundo", lamentou. Chappatte insistiu que a lógica nessas redes sociais não é a da razão. "A primeira voz mais raivosa é a que dá o tom. E isso é ridículo", atacou.

Para o cartunista, o risco é de que o humor acabe ganhando fronteiras rígidas e perigosas. "O humor é tão necessário para nossas vidas como o ar que respiramos", disse. "Com cada cartunista que é demitido ou morto, vamos perder se deixarmos isso ocorrer", disse.

 

 

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)