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Jamil Chade

Brasil vive “erosão” democrática, alerta instituto sueco

Jamil Chade

25/05/2019 04h00

Diante da ONU, protesto marca o 1o aniversário do assassinato de Marielle Franco. Foto: Jamil Chade

 

GENEBRA – O Brasil entra para o grupo de países que vivem uma "erosão" em suas democracias. A avaliação é do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, o maior banco de dados sobre democracias no mundo.

Num novo informe publicado nesta semana, os pesquisadores identificaram 24 países que "estão sendo afetados severamente pelo que é estabelecido como uma terceira onda de autocratização". "Esses países incluem o Brasil, Índia, EUA, assim como vários países da Europa do Leste", aponta o estudo.

Os dados se referem ao acontecimentos do ano de 2018 e não incluem ainda o governo de Jair Bolsonaro. O processo eleitoral, porém, fez parte da avaliação, assim como a tensão política no período de campanha e os ataques contra a liberdade de expressão.

A iniciativa de avaliar o comportamento das democracias da Universidade de Gotemburgo é uma nova forma de medir os regimes democráticos e examina-los em sua complexidade. A ideia é de que uma democracia é muito mais apenas a existência de eleições. No total, mais de 450 indicadores são avaliados.

Hoje, o V-Dem produz e coleta informações sobre países entre os anos de 1789 a 2018. No total, 3 mil acadêmicos trabalham indiretamente na formulação da análise.

Na edição de 2018 do informe, os especialistas já apontavam para deslizes registrados no Brasil no que se refere à democracia e baseado em dados até 2017. Agora, o alerta é ainda mais forte. De acordo com o estudo de 2019, a "erosão democrática afeta três democracias eleitorais de longa data: Bulgária, Brasil e Índia".

"Nesse três casos, ataques contra o pluralismo da imprensa, academia e liberdade cultural e uma substancial polarização na sociedade são chaves na deterioração", disse. "Em todos esses três países, ficou mais perigoso ser um jornalista, segundo tanto os indicadores da V-Dem como os registrados da entidade Repórteres Sem Fronteira sobre ataques mortais contra jornalistas", apontou.

"No Brasil, o clima política ficou cada vez mais polarizado nos antes que antecederam à eleição do populista de extrema-direita, Bolsonaro, como presidente em outubro de 2018", constatam os pesquisadores.

"Em especial, o impeachment da então presidente Dilma Rousseff em 2016 a prisão do ex-presidente Lula em 2017 por corrupção geraram fortes debates e protestos. Esses exemplos de deterioração do clima política levaram a uma erosão significativa", completou.

 

Tóxico

No informe deste ano, os autores pela primeira vez tratam do fenômeno de "proliferação da polarização tóxica". Na avaliação dos especialistas, esse é um elemento "perigoso" no cenário político atual.

A ideia é de que se elites políticas e seus simpatizantes não consideram mais os opositores políticos como legítimos e merecedores de respeito, eles tendem a não aderir da mesma forma às regras da democracia ao lutar pelo poder.

Um dos indicadores nessa avaliação é o de "justificativa razoável" para legitimar uma decisão política e, nesse critério, o Brasil é um dos exemplos de países que enfrentam problemas. "Esse indicador reflete a dimensão pela qual políticos fornecem justificativas baseadas em fatos para escolhas políticas", explicou o estudo. Além do Brasil, tais problemas são encontrados nos EUA, Polônia ou Índia.

Outro critério onde o Brasil sofre é o de "respeito por contra-argumentos". Esse indicador, segundo os acadêmicos, avalia o respeito mútuo sobre ideias. "Com o fortalecimento do populismo, sociedades estão cada vez mis divididas em campos antagonistas, impedindo um debate político construtivo", disse.

"Portanto, é preocupante que esses dois indicadores – justificativas razoáveis e respeito por contra-argumentos – estejam em declínio significativo em em democracias liberais como o Brasil, onde o clima político está cada vez mais polarizado nos anos que levaram à eleição do populista de extrema direita Bolsonaro como presidente", argumentou.

Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, explicou ao blog que dois elementos pesaram ainda na avaliação do Brasil: a liberdade de expressão cada vez mais atacada e a capacidade ou vontade do Poder Legislativo de monitorar de fato o Executivo. "É preocupante que um país da dimensão do Brasil e com a influência do Brasil siga essa tendência", apontou.

Avanço

O que assusta alguns de seus autores é o fato de que essa terceira onda de deterioração das democracias em cem anos passou a incluir grandes países, como EUA, Índia e o Brasil. Entre 2016 e 2018, o número de pessoas vivendo sob tais condições passou de 415 milhões para mais de 2,3 bilhões.

No final de 2018, um terço da população mundial vivia em países que atravessam um processo de autocratização.

Segundo Staffan Lindberg, a primeira onda ocorreu nos anos 20 e 30, com o avanço do fascismo. Uma segunda onda foi registrada nos anos 60 e 70, com governos militares na América Latina e em outras regiões. Agora, a terceira onda é diferente, com um avanço mais lento do processo autocrático.

Ainda assim, os académicos insistem que a maioria do mundo continua sob um regime democrático e estaria presente em 99 países. "Sem dúvida o mundo é mais democrático hoje que em qualquer ponto do último século. Mas o número de democracias liberais caiu de 44 países em 2008 para apenas 39 em 2018", completa.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)