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Jamil Chade

Xavantes denunciam governo Bolsonaro na ONU por “desmonte” da Funai

Jamil Chade

24/04/2019 14h04

Queixa que será entregue na sexta-feira em Genebra também cita falta de consultas em obras rodoviárias que afetam terras dos povos indígenas. Grupo pede medidas urgentes por parte das Nações Unidas. 

 

Foto: Paulo Whitaker. 12 de abril de 2013. Reuters

 

GENEBRA – O povo Xavante recorrerá à ONU contra o governo de Jair Bolsonaro. Numa queixa que será entregue ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial, em Genebra na sexta-feira, associações e assessores jurídicos que representam o grupo indígena denunciarão o "desmonte" da Funai e pedirão que obras de estradas planejadas para suas terras sejam suspensas até que consultas possam ser realizadas.

Essa é a primeira iniciativa internacional concreta de um grupo em busca de proteção diante das políticas nacionais. O Comitê da ONU não tem o poder de obrigar o estado brasileiro a fazer qualquer tipo de ação. Mas uma recomendação dos peritos colocaria pressão sobre o governo e ainda aprofundaria o processo de deterioração de sua imagem na comunidade internacional. Ao não cumprir uma recomendação do Comitê, o Brasil ainda enfraquece sua posição e afeta sua credibilidade no que se refere a assuntos relacionados a direitos humanos.

Para o grupo indígena, as mudanças na Funai e as sinalizações de ampliação de obras de estradas em seus territórios sem consultas prévias representam "violações fundamentais dos direitos humanos dos povos Xavante". "Como resultado da ação do Brasil, esses povos enfrentam um dano irreparável para sua cultura, terras e sobrevivência", alerta o documento entregue às Nações Unidas e elaborado em conjunto pela Wara, associação Xavante, e especialistas.

Na denúncia, o grupo pede o apoio urgente da ONU para o "restabelecimento e fortalecimento" da Funai. Seu desmonte, segundo eles, seria de grande impacto para "a sobrevivência dos povos indígenas brasileiros".

De acordo com os documentos contendo mais de cem páginas entregues às Nações Unidas e obtidas pelo blog, as preocupações já começaram com sinais do governo de Michel Temer de que poderia reduzir as exigências de consultas com grupos indígenas no que se refere às obras de infra-estrutura.

Mas esse temor se intensificou com a eleição do novo presidente. "Ao longo de sua campanha, o candidato Jair Bolsonaro (atual presidente) fez comentários racistas sobre os povos indígenas do Brasil", diz um dos documentos. "Ele ameaçou fechar a FUNAI e afirmou que durante seu mandato "nem um centímetro de terra será demarcada para reservas indígenas ou quilombolas".

"Bolsonaro proclamou os povos indígenas um obstáculo ao agronegócio e expressou objetivos de reduzir a proteção do meio ambiente e dos direitos indígenas", denunciam os indígenas.

Os Xavantes alertam que "em seu segundo dia de posse, o presidente Bolsonaro demonstrou seu compromisso em minar os direitos dos povos indígenas ao promulgar a Medida Provisória 870 ("MP 870"), que estrutura a Funai, assim como mudam outras leis federais para permitir tal reestruturação".

"A MP 870 transfere as responsabilidades da FUNAI de demarcação de terras e licenciamento ambiental do Ministério da Justiça e Segurança Pública para o Ministério da Agricultura, a agência governamental cuja missão é promover interesses agrícolas", denunciam. "Tereza Cristina Dias, a nova Ministra da Agricultura, defendeu a eliminação das regulamentações que impedem o desenvolvimento agrícola, incluindo a proteção das terras indígenas", alertaram.

Os documentos também citam uma carta FUNAI onde se observa a manobra para uma flexibilização de critérios para permitir que 7 mil processos de licenciamento ambiental pendentes fossem transferidos para o Ministério da Agricultura. "O objetivo dessa mudança é acelerar processos que beneficiem os empreendedores sem considerar os riscos e as consequências para os povos indígenas", denunciam.

"A recente e drástica decisão da nova administração brasileira de desmontar a Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por proteger seus povos indígenas, é angustiante e levanta sérias questões sobre como e se o novo governo brasileiro irá proteger os direitos dos povos indígenas", alertam.

Estradas – Um dos pontos centrais da queixa, porém, é a ampliação das rodovias nas proximidades das terras demarcadas. As obras, segundo eles, teriam como objetivo ampliar o escoamento da safra brasileira.

Uma delas, a BR-080, afetaria o vilarejo de Tsõrepré, de "imensa importância cultural" para os indígenas. Também existem temores de obras de ferrovias, financiadas por grupos chineses.

"A construção de estradas e ferrovias nos territórios tradicionais do Xavante e nas suas proximidades, as terras demarcadas e os locais culturais sagrados são os primeiros passos para a intensificação da construção de estradas e ferrovias", alertaram.

"Jair Bolsonaro, um fervoroso defensor do agronegócio, busca modernizar a infra-estrutura do Brasil e, ao fazê-lo, arrisca a vida dos Xavante e de outros povos indígenas", denunciam. "Apesar dos estudos governamentais reconhecerem os efeitos nocivos que os projetos rodoviários têm sobre a saúde, os recursos naturais, a segurança e a cultura dos Xavantes, o governo está avançando a um ritmo acelerado com esses projetos de infraestrutura", alertam.

"O Brasil tem o dever de consultar os povos indígenas sobre esses tipos de projetos de infraestrutura, mas atualmente não está cumprindo esse dever no que diz respeito à construção de pelo menos uma rodovia federal em terras tradicionais do Xavante e perto de um local sagrado", dizem.

"Se o Brasil continuar nesta linha de ação, os povos Xavante sofrerão danos irreparáveis às suas terras e recursos naturais, que lhes proporcionam sustento e subsistência, e um importante sítio sagrado e cultural será destruído", afirmam.

Associação Xavante Warã apela agora o Comitê da ONU a "tomar medidas imediatas para tratar destas questões".

Entre as medidas solicitadas, o grupo indigne quer que a ONU pressione o Brasil a realizar consultas sobre qualquer tipo de projeto de infra-estrutura. A denúncia também lembra que é obrigação do estado promover um diálogo sobre as obras das estradas BR-080, MT-242.

Além disso, os povos indígenas solicitam que a ONU "promova negociações entre o Brasil e os povos xavantes".

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)