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Jamil Chade

Na Suíça, Vale se transforma em alvo de debate político

Jamil Chade

01/04/2019 07h33

 

Em Lausanne, políticos debatem situação da Vale. Foto: Jamil Chade

GENEBRA – À beira do Lago Leman, a Vale é alvo de um intenso debate político na Suíça. Desde 2006, a mineradora brasileira tem sua sede no exterior na pequena cidade de Saint-Prex, no cantão de Vaud.

Por um acordo com as autoridades locais, a Vale recebeu um desconto importante no pagamento de seus impostos. Por dez anos, ela ficou isenta de qualquer imposto cantonal e recebeu um desconto que chegou a 80% nos impostos federais. Isso, porém, teria terminado em 2015.

A concessão desses privilégios fiscais já tinha sido alvo de uma discussão entre diferentes partidos políticos e chegou a ser investigado pelo fisco suíço.

Segundo as acusações de partidos de esquerda, a Vale previa lucros de US$ 35 milhões quando se instalou no país. Mas, segundo eles, teria repatriado para a Suíça seus lucros de suas atividades pelo mundo, no valor de mais de US$ 5 bilhões.

Em 2012, foi estabelecido pelo fisco suíço que a empresa brasileira teria de pagar US$ 233 milhões em impostos para o período entre 2006 e 2009, numa espécie de multa. A companhia já havia depositado US$ 310 milhões para o mesmo período.

Mas, agora, a empresa brasileira voltou ao centro das atenções na Suíça, em parte diante das mortes de Brumadinho.

Está em discussão no Parlamento Federal do país europeu um projeto de lei que impediria que multinacionais com sede na Suíça deduzam multas e punições no exterior de seus impostos pagos na Suíça. Além disso, existe a possibilidade de que os suíços sejam convocados às urnas para votar por uma iniciativa popular que exigirá das multinacionais domiciliadas na Suíça a respeitar os direitos humanos, meio ambiente e leis trabalhistas, mesmo em operações no exterior.

Vassilis Venizelos, deputado do Partido Verde, foi um dos parlamentares que liderou a iniciativa de colocar o assunto na ordem do dia no Grande Conselho de Vaud, no mês passado. Com o apoio de quatro partidos, entre eles grupos de centro e de esquerda, ele pediu garantias do Poder Executivo de que a empresa Vale não iria "descontar" eventuais multas que sofra por conta do desastre em seu pagamento de impostos em sua sede internacional na Suíça.

Sua iniciativa levou o Grande Conselho – uma espécie de parlamento estadual – a colocar o assunto na agenda e, numa reunião em fevereiro, o racha político em relação à empresa brasileira ficou evidente.

Ao discursar diante dos demais parlamentares, Venizelos lembrou que a empresa brasileira se beneficiou "por vários anos de exonerações fiscais no cantão (de Vaud)". Por um "dever moral" e de "transparências", ele afirma que seria "insuportável imaginar que essa sociedade desenvolva montagens financeiras para reduzir suas responsabilidades fiscais".

Num documento, Venizelos e outros quatro parlamentares exigem respostas sobre pelo menos três pontos envolvendo a empresa brasileira. O primeiro deles é a informação sobre a atual situação fiscal da empresa que, desde 2015, não se beneficiaria mais de uma exoneração completa de impostos, como ocorria antes.

O grupo ainda quer saber se o Executivo avaliou a responsabilidade social e ambiental da empresa ao conceder a exoneração entre 2006 e 2015. Para completar, os deputados querem saber do governo se a Vale assumiu algum compromisso de "não deduzir as sanções financeiras" que ela poderia sofrer.

Quem também levantou o caso foi Vincent Keller, da Esquerda Radical. Num pedido enviado ao Executivo de Vaud, ele pediu esclarecimentos. Um deles se refere à ligação que possa existir entre a Vale International S.A. e os acontecimentos no Brasil e se a empresa na Suíça poderia ser passível de processos judiciais.

Dinheiro – Mas o debate escancarou a divisão que existe entre a classe política suíça sobre a responsabilidade das multinacionais que estejam sediadas no país. As diferenças foram explicitadas quando, por iniciativa do parlamentar Jean Michel Dolivo (do partido Ensemble à Gauche), uma resolução foi proposta no sentido de enviar recursos do cantão de Vaud para ajudar financeiramente as vítimas da barragem. "É um gesto moral, sem qualquer reconhecimento de responsabilidade", indicou Dolivo. "As famílias estão em uma situação dramática", alertou.

Gregory Devaud (Liberais Radicais) foi o primeiro a se opor à ideia do envio de dinheiro. "Somos sensíveis ao que ocorreu", garantiu. Mas ele questionou a obrigação do cantão de se engajar em uma ajuda financeira.

Devaud chegou a lembrar que os controles sobre a barragem deveriam ter sido garantidos no momento de sua construção, por parte do governo brasileiro e, em especial, pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, que presidia o país no momento das obras.

"Ficamos perplexos com o uso político da catástrofe", acusou o representante, que alerta que o projeto de enviar dinheiro era uma "manobra política inadequada" e que tem como objetivo doméstico de atacar políticas locais que favorecem a instalação de empresas multinacionais.

François Pointet, presidente do Partido Verde Liberal de Vaud, fez questão de indicar que seu grupo apoiaria da resolução. Mas ele alertou que os autores da proposta estavam usando a crise no Brasil por "motivos eleitorais" e apelando ao "emocional" para fortalecer sua posição. "A responsabilidade não é só da empresa. O que fez o governo brasileiro, de direita ou esquerda? Ele dorme", acusou.  "Vaud não pode ter a responsabilidade moral", indicou.

Do outro lado da sala, a resposta veio de Carine Carvalho, do Partido Socialista de Vaud e de origem brasileira. "Não se trata apenas de uma questão brasileira", insistiu. Para ela, a Suíça tem sim uma "responsabilidade moral" diante da presença da mineradora no país.  "Não podemos lavar as mãos, de nossa confortável sala de madeira", criticou.

Uma visão diferente tinha o parlamentar do partido de direita, UDC,  Philippe Jobin, que insistiu que não via motivo para colocar em questão a situação da Vale na Suíça. Para ele, a mineradora com atividade no Brasil e a empresa com sede em Vaud são "completamente diferentes". "Aqui, temos a Vale Internacional", justificou.

Rejeitando a ideia de enviar dinheiro ao Brasil, ele destacou que a mineradora já se comprometeu a dar 26 mil francos suíços por cada vítima e também indenizar a cidade de Brumadinho.

A posição de Jobin ecoava exatamente os argumentos apresentados pela Vale que, para a imprensa suíça, insistiu que sua filial na Europa não está sendo "impactada pelas multas ou compensações impostas sobre a Vale SA".

Questionada sobre a questão de impostos, a empresa indicou que "no momento, em nossa opinião, seria inadequado e insensível comentar as questões tributárias de qualquer maneira". A prioridade, segundo ela, seria "apoiar o esforço de resgate e ajudar a preservar e proteger a vida de todos os funcionários nas comunidades locais afetadas".

O contra-ataque veio de Hadrien Buclin, do partido Ensemble à Gauche. Segundo ele, a capacidade do Brasil de promover um maior controle é enfraquecida justamente por conta dos lucros das empresas que conseguem escapar e ser registrados no exterior, como em Vaud.

"A separação (entre as empresas) é uma montagem jurídica para a evasão fiscal", alertou. Segundo ele, isso tem sido cada vez mais questionado, inclusive pela OCDE.

Uma avaliação parecida foi defendida por Claude Schwab, do Partido Socialista de Vaud. "O Cantão recebe o dinheiro da Vale e, agora, quer cortar a mão que deve dar?" Jerome Christen (Vaud Libre) chegou a mencionar o que, em sua opinião, seria uma solução para o futuro. "O ideal seria a de não receber mais essas empresas", defendeu.

O debate exigiu até mesmo que o Poder Executivo fosse chamado a se pronunciar. Philippe Leuba, membro do Conselho de Estado e chefe do Departamento de Economia de Vaud, alertou para a transformação de um gesto de solidariedade em um reconhecimento de uma responsabilidade que o cantão não poderia assumir.

"Não é questão lavar a mão", disse. "Os suíços mostraram que, sempre que há uma catástrofe, estão dispostos a ajudar. Se esse é um gesto de solidariedade, não iremos nos opor", disse. "Mas, se por trás do texto (da resolução), o objetivo é o de estabelecer uma responsabilidade moral de uma coletividade publica, não iremos apoiar", alertou o representante do Partido Liberal Radical.

Num discurso com um tom de indignação, ele deixou claro que seu cantão não poderia assumir a responsabilidade sobre algo que ocorre do outro lado do mundo e do qual as autoridades não tem controle.

Rejeitando o que ele chamou de "justiça populista", Leuba criticou a instrumentalização do desastre e pediu "prudência".

Ao final, a proposta de enviar recursos financeiros ao Brasil foi aprovada por 74 votos a favor e 70 contra, mostrando o racha causado pelo assunto.

Mas a dimensão política da Vale já revela seus custos políticos aos pés dos Alpes.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)