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Jamil Chade

Durante a Ditadura, até o peru foi censurado

Jamil Chade

01/04/2019 04h00

GENEBRA – Para o presidente Jair Bolsonaro, em 31 de março de 1964, evitou-se que o País seguisse o caminho do comunismo. E, segundo ele, nos anos seguintes apenas alguns "probleminhas" foram registrados.

Mas além da tortura, das mortes e dos crimes, os anos 70 foram marcados por uma outra ação menos conhecida por parte do governo: a censura à publicidade e comerciais que chegavam a milhões de brasileiros em uma sociedade que passava, cada vez mais, a ter a televisão em um local privilegiado de suas casas.

Quem viveu tudo aquilo foi Roberto Duailibi, publicitário e sócio da DPZ, na época uma das agências mais inovadoras do País. Em entrevista ao blog, ele conta como era lidar com os funcionários responsáveis pela censura, muitas vezes baseada apenas em critérios morais.

"No ano de 1972, a Polícia Federal trouxe para  São Paulo uma multidão de censores para exercer sua atividade em todos os jornais, revistas, teatros, emissoras rádio e de televisão e agências de publicidade", diz.

"Até mesmo anúncios eram encarados como ameaças à moral vigente e deveriam ser submetidos a uma aprovação formal por um orgão da censura em São Paulo. Não havia nenhuma regra por escrito sobre o que era censurável ou não, ficava a critério de cada censor", conta.

Segundo ele, algum tempo depois viria uma ordem: toda campanha deveria ser aprovada previamente em Brasília.

"Isso gerou um tráfego aéreo excepcional para o Planalto Central e Alex Periscinoto conta a história de que se tornou tão habitual a visão de publicitários carregando pastas com layouts em Congonhas, que o pessoal que revistava os passageiros antes de entrarem nos aviões já os conhecia: "Aí, hein, seu Alex! Pasta enorme. Lançamento grande, hein!"

"A DPZ, uma pequena agência então, que se caracterizava pela irreverência, foi um alvo predileto dos censores", afirma.

Ela foi, por exemplo,a única agência a ser processada formalmente pela Polícia Federal, por causa de um anúncio do Supermercado Peg-Pag, que comemorava seus 17 anos com uma liquidação.

Num anúncio de página dupla nos jornais, o título era "Loucuras que a gente só faz aos 17 anos", para justificar a rebaixa de preço em inúmeros produtos.

"Entre duas listas de "loucuras" – as dos rapazes e os das moças – havia uma que dizia que o rapaz pega a chave do carro do pai para dar umas voltinhas e a moça diz à mãe que vai à igreja e vai namorar atrás da igreja", relembra o publicitário.

"Pois algum censor achou que essas duas referências eram "um estímulo a crimes" e fez iniciar um processo contra a agência. Contratamos o advogado José Carlos Dias, amigo nosso, que indicou como testemunhas de defesa o Professor Bardi, diretor do MASP, o poeta Mario Chamie e o Jô Soares. Contou-nos José Carlos Dias que o juiz que recebeu o processo não pensava dar prosseguimento à ação, mas confessou que era fã do Jô Soares e queria conhecê-lo e por isso iria convocar todos", diz.

"O processo durou aproximadamente oito anos e terminou com nossa absolvição, mas causou enorme apreensão entre os clientes", lamenta.

Censores – Roberto Duailibi conta que havia dois chefes de censores que se destacavam no enorme edifício onde estava, na ocasião, localizada a sede da PF em São Paulo, ao lado da Biblioteca Municipal.

"Um deles se chamava Professor Potiguara – devia ser codinome – e era um alagoano baixinho e muito magro, que vestia sempre um terno escuro e portava uma gravata fininha e muito brilhante pelo uso excessivo; o outro era o Doutor Richard de Bloch – que não tinha nenhum parentesco com os Bloch da Manchete – e que era uma pessoa refinada, que entendia de vinhos e culinária", relembra.

"Enquanto o primeiro sempre nos recebia, quando convocados, com hostilidade e suspeita, o Dr. Richard, embora duro, pelo menos cumprimentava com educação e circulava em eventos promovidos por entidades beneficentes", disse. "Sua esposa, dona Cizinha, que o acompanhava nessas ocasiões, era uma pessoa sociável e simpática e, em voz baixa, confessava sua indignação com algumas das ações comandadas por seu marido e seus colegas", conta  Duailibi.

Numa ocasião, a pedido da Organização Mundial de Saúde, a Johnson & Johnson solicitou à DPZ uma campanha para seu produto Jontex.

"Acontece que no Brasil havia uma lei que proibia a divulgação de todo e qualquer método anticoncepcional", disse. "Mesmo sabendo da existência dessa lei, resolvemos fazer uma campanha para Jontex, centrada em anúncios de pequeno espaço a serem publicados nas páginas esportivas dos jornais", diz.

"Não teve perdão. Fomos chamados pelo Professor Potiguara que exigia a suspensão da campanha", lamenta.

O censor teria dito: "Não importa que tenha sido pedida pela OMS; o que é bom para a OMS nem sempre é bom para o Brasil!.

E, apontando para uma palavra no anúncio, com o rosto virado para não vê-la, dizia indignado: "Tenho uma filha de 15 anos que não é nenhuma santinha, mas não tenho coragem de levar para casa um jornal que contenha essa palavra!" e punha o dedo sobre a palavra "gonorréia".

Peitos e perus – Roberto Duailibi relata ainda como fez um cartaz para o bronzeador Sundown, com um layout magnífico do Zaragoza, em que aparecia a silhueta da Leila Diniz de costas, deitada, com um biquini, sugerindo que estivesse topless.

"Mais uma vez fomos chamados e o professor Potiguara nos deu uma lição: "Podemos admitir que as mulheres tenham seios, mas não podemos permitir que elas os mostrem". O cartaz foi suspenso.

Mas o publicitário tinha seus informantes. Uma delas era dona Cizinha, a esposa de um dos censores.

"Ele me ligou em caráter pessoal, para avisar, "Seu Roberto, eles vão apreender a revista Claudia que já está nas bancas por causa de um anúncio de vocês".

"Fui descobrir que era um anúncio de OB, cujo texto informava que, entre outras virtudes, o produto ajudava a  combater o odor da menstruação. Fui correndo ao prédio da PF para saber os detalhes da apreensão e o Dr. Richard me informou educadamente: "Doutor Roberto – eles sempre me chamavam de "doutor" – , não se permite publicar 'odor da menstruação': é nossa obrigação preservar a imagem romântica da mulher", disse.

Roberto Duailibi ainda revela o caso do comercial de natal do Peru Sadia. "Acharam que a palavra "peru" tinha dupla conotação", diz. O publicitário conta que o professor Potiguara foi informado pelos demais censores que a palavra "peru" se referia ao alimento.

Ele, então, mandou projetar de novo o filme, que terminava com a frase: "se não couber no forno de sua casa, leve o peru para a padaria".

"O professor se levantou vitorioso. "Peru na padaria! Está caracterizada a malícia", conta Roberto Duailibi, hoje às gargalhadas.

O lançamento do quibe, também da Sadia, foi outro problema. No comercial, aparecia um árabe no deserto tendo visões de uma miragem onde o quibe era oferecido.

O personagem, porém, murmurava frases que pareciam árabe. Mas foi denunciado diante de um boato de que ele estaria dizendo coisas contra o governo. "Tive de levar à PF meu cunhado, que era libanês, para testemunhar que o ator nem árabe falava", conta o publicitário.

Roberto Duailibi afirma que a censura não se limitou a sua agência e várias outras tiveram de suspender campanhas, ou modificá-las, porque os censores achavam que os preceitos morais estavam em perigo.

"A situação só mudou em 1980 quando foi indicado como chefe de censura em São Paulo um funcionário vindo de Brasília, de nome Madeira, que reuniu numa sala uns 40 ou 50 censores e os proibiu, com palavras até duras, de interferir na vida das empresas", disse.

"Fui testemunha desse momento, pois ele me chamou para relatar aos censores os absurdos que estávamos vivendo. Foi a primeira vez que os vi todos juntos, pessoas sem preparo para a convivência civilizada, mas com poderes par atrapalhar a vida de quem cria e trabalha", completa.

Mesmo diante dessas adversidades, Duailibi acabou construindo uma amizade com militares que tinham pouco a ver com esses censores e chegou a ser um dos fundadores da Fundação Cultural Exército Brasileiro.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)