Militares falavam em “terminar” com estudantes e padres, dizem telegramas

Documento enviado pelo consulado da Suíça no Rio afirma, em 1973, que a tortura não é uma novidade no Brasil
GENEBRA – Se necessário, a violência deveria ser usada para "terminar" com "comunistas, padres e estudantes de extrema-esquerda".
O relato faz parte de um telegrama da diplomacia suíça, mantido hoje nos arquivos oficiais do país europeu. Ao longo dos anos 60 e 70, diversos documentos, relatos e alertas foram enviados pelos embaixadores e enviados suíços com base no Brasil à chancelaria em Berna, descrevendo uma situação de tortura, violações de direitos humanos e crimes cometidos pela ditadura militar.
No dia 30 de outubro de 1968, por exemplo, o embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, faria um relato da situação do país a Willy Spuehler, chefe do Departamento Político Federal em Berna.
"É certo que a polícia, mal formada e mal paga, reage com frequência de maneira muito violenta: ela faz prisões na rua, sem discriminação, de culpados e de inocentes que ela solta depois de um, dois ou três dias de detenção", escreveu Bucher. No texto, ele chega a chamar os membros do governo brasileiro de "medíocres".
Mas é o relato de uma conversa com o marechal aposentado Odilio Denys, que da a dimensão do que os militares estariam dispostos a fazer, ainda nos primeiros anos do regime militar. "Ele me declarou que era necessário terminar, se necessário pela violência, com os comunistas, com os padres e estudantes da extrema-esquerda", contou o embaixador.
Num telegrama de 24 de outubro de 1973, o cônsul suíço no Rio de Janeiro, Marcel Guelat, escreve ao secretário-geral do Departamento de Política do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Ernesto Thalmann, para explicar a situação no País. O texto – que leva o título "Tortura no Brasil" – ainda era uma resposta a um pedido de Berna por informações.
Se no contexto internacional a Suíça manteve sua postura tradicional de neutralidade e buscou sempre canais de comunicação, os documentos revelam que os diplomatas mantinham uma postura interna crítica em relação às violações praticadas no País.
Num texto de oito páginas, o cônsul admitiu que a tortura foi "sempre praticada mais ou menos de forma aberta" no Brasil. A origem, segundo o cônsul, estava no governo de Getulio Vargas nos anos 30. "Desde então, servia de forma clandestina em praticamente todas as corporações policiais", explicou.
Mas, segundo ele, a novidade era a existência da tortura nas Forças Armadas. "Ainda que a situação econômica do Brasil acuse uma recuperação importante, em contraste com os países vizinhos, não é menos verdade que a ditadura militar pretende se manter no governo, por meio de uma repressão muito severa", disse.
Para concluir ao governo em Berna que a tortura não era isolada e que a repressão era "severa", o diplomata insiste que as evidências de uma repressão eram amplas. Além de relatos de testemunhas, o representante destacou a existência de diversas condenações contra a "elite intelectual e meios estudantis".
O cônsul cita o Dops, "conhecido por sua brutalidade", para explicar o mecanismo adotado pelo governo. "Certas unidades do exército começam a recorrer a diversos métodos de tortura: punições corporais, queimaduras, eletrochoques, câmaras frias, etc", alertou o diplomata aos seus superiores em Berna.
Para ele, não existiam dúvidas sobre o envolvimento da cúpula do governo. "Dada a disciplina militar que reina na tropa, me parece impensável que essas fatos sejam ignorados pelo escalão mais elevado, mas sim nos faz acreditar que o governo brasileiro mudou de ideia e que ele aprova o emprego da tortura, enquanto continua a negar os fatos", disse.
A "mudança de ideia" citada pelo diplomata se refere ao fato de que, desde os anos 30, as Forças Armadas tentavam se manter distantes de tais práticas. Mas isso teria sido abandonado.
O diplomata também faz uma avaliação crítica da Justiça no Brasil durante o regime militar. "Ao longo da história do Brasil, o poder Judiciário foi sempre respeitado e soube conservar seu prestígio de órgão responsável por garantir as liberdades individuais", apontou. "Hoje, não é mais o caso, já que a Justiça perdeu suas prerrogativas por conta de atos institucionais decretados pelo governo militar", explicou.
"O estado policial substituiu o estado de direito", alertou. "A violência nunca foi praticada com tanta falta de escrúpulos, seja pelos criminosos ou pela polícia", completou.
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