A revolução do fim do mundo
Na Nova Zelândia, a resposta da primeira-ministra Jacinda Ardern diante do ataque terrorista pode dar pistas sobre como unir um país e é interpretado como vacina contra a onda populista que ganha força.

Em Dubai, edifício mais alto do mundo estampa foto de Jacinda Ardern. AFP Photo. Março 2019
GENEBRA – Na última sexta-feira, o edifício mais alto do mundo, o Burj Khalifa em Dubai, estampava uma imagem surpreendente: a de uma mulher não muçulmana mostrando solidariedade diante do que obviamente era um momento difícil.
A foto era de Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia que, diante da morte de 50 pessoas em seu país por conta de um ataque da extrema-direita, teve uma reação que colocou em xeque a forma pela qual governos vinham respondendo a crises semelhantes.
Seu país foi alvo de um ataque terrorista. Ao contrário do que era alertado por políticos da direita radical, a ameaça não veio dos muçulmanos no país. Mas daqueles que se recusam a aceitar a chegada daquela população "diferente" na ilha que muitos chamam de "o fim do mundo" por sua distância dos grandes centros de poder.
Se a violência na pacata cidade de Christchurch surpreendeu o mundo, foi também a reação de Ardern que chamou a atenção, inclusive de outros líderes mundiais. Nos Emirados Árabes Unidos, o líder local emitiu nas redes sociais uma mensagem de agradecimento. Segundo ele, a primeira-ministra "ganhou o respeito de 1,5 bilhão de muçulmanos".
Ardern não usou o evento para prometer vingança. Ela não fez um sinal de armas com a mão, ela não usou os enterros como palanque, ela não fez um sinal de vitória. Ela até mesmo se recusou a dizer em público o nome do terrorista, num ato calculado para jamais dar a ele o que o assassino queria: visibilidade.
Uma semana depois do atentado, ela se uniu a milhares de pessoas que prestaram homenagem aos mortos diante de uma das mesquitas atingidas. Para uma população muçulmana que representa 1% dos habitantes de seu país – e que sequer contam nas eleições – ela garantiu: "neste momento, somos apenas um país".
Sem medo, ela qualificou o ato daquele homem branco e cristão como "terrorismo". Ela não usou bandeiras nacionais, não abusou de seu hino nacional, não deu qualquer demonstração de que considera sua cultura como superior e, acima de tudo, não tocou na palavra "patriotismo".
A chefe-de-governo fez exatamente o contrário: usou o véu islâmico para ir ao encontro das famílias das vítimas. Seu gesto foi replicado por mulheres cristãs em todo o país.
Dias depois, não sugeriu que armas fossem distribuídas à população para que tais crimes não se repetissem, como foi dito por políticos brasileiros horas depois das mortes em Suzano. Muito pelo contrário: em menos de uma semana, leis foram aprovadas para endurecer o acesso às armas.
O país registrou uma onda de devolução de armas por parte de seus proprietários e Ardern ainda prometeu destinar mais de US$ 100 milhões para comprar armas que estejam nas mãos de cidadãos, justamente para desarmar o país.
No fundo, ela pode ter inaugurado uma nova forma de responder a uma ameaça a uma nação. Em Christchurch, todos seus discursos – e não foram poucos – foram marcados pela ausência de um tom de vingança. Nem muito menos a declaração de uma guerra, como George W. Bush fez há quase 20 anos.
No lugar de atacar o terrorista e encontrar culpados, prometer "justiça" e "vencer", ela preferiu concentrar suas atenções nas vítimas. Na verdade, sua opção foi por unir o país.
Um de seus discursos foi especialmente marcante. Ao se referir aos muçulmanos mortos e suas famílias, ela foi explícita: "eles escolheram transformar a Nova Zelândia em suas casas. Eles são nós".
Num mundo em que fronteiras são fechadas com base em religião, em que o ódio tem em líderes políticos seu principais promotores, as frases e gestos de Ardern são verdadeiras revoluções.
Ela ainda deu início a uma campanha global contra o racismo e prometeu examinar o papel das redes sociais na disseminação do ódio. Seu exemplo levou empresas a seguir o mesmo caminho, enquanto sinais de solidariedade explodiram de diferentes formas e grupos pela Nova Zelândia.
A primeira-ministra se transformou até mesmo em verbo. "To Ardern Up" passou a ser usado para falar de um gesto de solidariedade real, acompanhado de medidas concretas e de empatia às vítimas. A melhor tradução talvez fosse "ardernizar", como se fosse uma espécie de vacina contra populistas.

Jacinda Ardern, usa véu em ato para homenagear mortos de ataque terrorista. 22.03. / Marty Melville
Bem-estar – Quando eu a vi pela primeira vez ao vivo, em Davos no início de 2019, lembro-me de ter levado um choque. Era como estar ouvindo uma realidade paralela com seu discurso. Horas antes, Jair Bolsonaro havia orquestrado seu primeiro grande vexame internacional ao discursar por apenas seis minutos diante da elite mundial e de ter de usar uma "cola" para responder a perguntas pré-ensaiadas.
Ardern, em uma outra sala, não precisava de cola para falar. Segura, ela apresentava o que seria uma inovação na forma de revelar o orçamento de seu país. A líder neozelandesa sugeria um "orçamento de bem-estar", baseado em medidas que pudessem ter um impacto real na vida das pessoas.
Num primeiro momento, pensei que se tratava de mais um dos atos vazios de Davos. Mas, ao ouvir a proposta, entendi que o que ela sugeria era de fato novo. E real.
No orçamento, os dados da pobreza, de doenças infantis e de desigualdade seriam explicitados. Caberia aos ministros dar soluções, com propostas, dinheiro e metas. Assim, as contas do país não estariam apenas baseada em superávit ou déficit. Em obras ou arrecadação. Mas num projeto de nação.
Seu argumento para a escolha de sair ao resgate dos mais pobres era claro: o populismo, a xenofobia e a intolerância estão ganhando espaço porque cidadãos não tem visto que seus interesses tem sido atendidos por partidos tradicionais. Diante dessa situação, elegeram Trump, Brexit e tantos outros – em uma espécie de guerra por procuração contra uma elite no poder que fracassou.
"Nossos povos estão nos dizendo que a política não está lhes atendendo", disse em Davos. Contra a onda de populismo, portanto, sua receita é "política com um pouco de coração", como ela mesmo sugere.
Com apenas 38 anos no ano passado, Ardern atraiu as lentes de todo o mundo ao desembarcar na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, com seu bebê de apenas três meses. Seu companheiro – um apresentador de um programa de pesca na TV – era quem se ocupava da garota enquanto ela discursava.
Mas a real manifestação de coragem da figura pouco convencional num século 21 turbulento não foi a companhia de sua filha. Horas depois, ela se recusou a assinar uma iniciativa de Donald Trump para convocar governos de todo o mundo a lutar contra as drogas.
Seu argumento era de que o texto tratava do problema do ponto de vista de segurança nacional. E não de saúde, como ela acreditava que deve ser a resposta.
Em casa, ela aumentou o período de licença paternidade, congelou salários de políticos e ampliou a cota para receber refugiados.
Muitos analistas alertam que seus gestos apenas funcionariam num país rico, com uma população que caberia na Zona Leste de São Paulo.
Ainda assim, num cenário de proliferação de ódio por líderes preocupados em conquistar o poder, seus atos poderiam ser classificados como uma pequena revolução.
Os ecos de uma revolução vindos do fim do mundo.

Jacinda Ardern leva sua filha para reunião da ONU, em Nova Iorque, em setembro de 2018. Don Emmert/AFP
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