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Jamil Chade

Na ONU, Brasil consegue aprovar missão para investigar crimes de Maduro

Jamil Chade

27/09/2019 07h17

 

GENEBRA – Uma proposta liderada pelo Brasil foi aprovada pela ONU, criando uma missão com a função de apurar crimes na Venezuela. Por 19 votos a favor, sete contra e 21 abstenções, o governo de Nicolas Maduro será alvo de uma pressão extra, uma estratégia já debatida entre o Itamaraty e o Departamento de Estado nos EUA para "desgastar" o poder em Caracas.

Pelo projeto, fica criada uma missão internacional para coletar dados sobre execuções sumárias, desaparecimentos, detenções arbitrárias e tortura.O projeto ainda estabelece uma condição: caso Maduro não coopere com a missão e se a crise se aprofundar ainda mais, a comunidade internacional voltaria a considerar a criação de uma comissão de inquérito.

Ao defender o projeto, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, apontou que as acusações de seis mil executados, um êxodo de 5 milhões de pessoas e 7 milhões de venezuelanos com necessidades seriam motivos suficientes para estabelecer o mecanismo. "É a nossa responsabilidade e o que as vitimas precisam", afirmou.

Ela lembrou que, pelos corredores na ONU, a proposta foi criticada. Mas insistiu. "Não somos os caras maus", disse.

Jorge Valero, embaixador venezuelano nas Nações Unidas, qualificou o projeto como "hostil" e alertou que a medida pode afetar a mediação que ocorre neste momento por parte da Noruega entre a oposição e governo venezuelano.

O diplomata não poupou críticas ao Brasil e ao restante do Grupo de Lima. "São países que seguem ao pé da letra as instruções da Casa Branca. São súditos de Trump", afirmou.

Ele ainda criticou diretamente o presidente Jair Bolsonaro, lembrando que o brasileiro é quem "justifica ditaduras" e aplaude a morte do pai de Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, e executado pelo governo de Augusto Pinochet.

Ele também alertou que não aceita tal iniciativa de um país que "mata indígenas e defensores de direitos humanos. "Esses governos não tem moral. É para eles que deveria ser criada uma comissão de investigações", disse.

Para Cuba, a resolução segue o caminho que Washington quer impôr de "mudança de regime" na região e a "escolha pela confrontação". "É falsa e hipócrita a preocupação desses países pelos direitos humanos na Venezuela", disse.

Uruguai e México optaram pela abstenção, enquanto os europeus votaram a favor do projeto.

Ceder

Para conseguir a aprovação da resolução e os votos necessários, porém, o Brasil teve de ceder em relação a seu projeto inicial. A ideia original era a de criar uma comissão de inquérito internacional para investigar os crimes cometidos por Nicolas Maduro.

Tal medida colocaria a situação da Venezuela no mesmo patamar de Síria, Mianmar, Coreia do Norte e Sudão. Além de investigar os crimes, o Brasil queria que a comissão também designasse os autores das violações, abrindo a possibilidade para que fossem levados a tribunais internacionais. Dentro de um projeto americano mais amplo, essa iniciativa ajudaria a colocar pressão sobre Maduro.

Diante da oposição de países europeus e diversos latino-americanos, o Itamaraty teve de flexibilizar sua posição e aceitar apenas o envio de uma missão com um perfil mais restrito.

A delegação brasileira, conforme o blog revelou, recebeu uma orientação do governo americano para apresentar a resolução e o texto acabou se transformando em uma iniciativa do Grupo de Lima.

Mas o projeto do Departamento de Estado, usando o Itamaraty, ameaçou não ser aprovado e a resolução acabou sendo modificada.

A proposta original não era bem-vista nem pela ONU e nem por diversos governos democráticos, como Espanha e mesmo a Itália. O argumento da oposição ao texto era de que, ao criar a comissão, Maduro poderia romper definitivamente com a ONU, justamente no momento em que a entidade conseguiu abrir um escritório em Caracas para monitorar as violações de direitos humanos.

O temor da cúpula da Europa é de que, com um rompimento, seu escritório seja fechado, impedindo o acompanhamento dos casos. Maduro, ao mesmo tempo, não permitiria a entrada da comissão de inquérito e o resultado seria a incapacidade da comunidade internacional de saber o que ocorre dentro da Venezuela.

Entre os europeus, outra preocupação tem relação com o impacto que tal comissão poderia gerar nos esforços de mediação entre a oposição venezuelana e o regime de Maduro. Nos últimos meses, o governo da Noruega passou a organizar esse diálogo, ainda que sem êxito por enquanto. Com a criação de uma comissão de inquérito que denuncie Maduro por crimes, a Europa acreditava que esse esforço de encontrar uma solução política teria de ser abandonado.

Missão

A opção foi a de aceitar a recomendação da Europa, que prevê apenas o envio de uma missão para a Venezuela para coletar dados sobre execuções sumárias, desaparecimentos, detenções arbitrárias e tortura.

No meio diplomático, o envio de uma "missão de apuração de fatos" (Fact Finding Mission) não representa o mesmo nível de pressão que uma comissão de inquérito internacional, aberta a investigar todos os aspectos da crise na Venezuela e de forma permanente.

O projeto ainda estabelece uma condição: caso Maduro não coopere com a missão e se a crise se aprofundar ainda mais, a comunidade internacional voltaria a considerar a criação de uma comissão de inquérito.

Do lado de Caracas, a medida proposta no novo texto continua sendo inaceitável e Maduro contará nos próximos dias com o lobby de governos como o da Rússia, China, Cuba, África do Sul e outros que tentaram convencer países a, pelo menos, se abster na votação.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)