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Jamil Chade

O que o cheiro da fumaça de Notre-Dame nos ensina

Jamil Chade

17/04/2019 16h47

ROMA – Entre edifícios espetaculares, pessoas elegantes e crianças alegres com seus sorvetes, Roma não parecia ter mudado desde a última vez em que estive na capital italiana, há poucos anos. Mas, no último fim de semana, atravessando uma das ruas próximas à piazza Navona, me deparei com uma vitrine com pequenas estátuas de figuras conhecidas.

No canto, uma delas me chamou a atenção: Mussolini. Para minha surpresa, ao lado dele, mais duas estatuetas de Adolf Hitler.

Decidi entrar na loja e questionar se aquelas peças faziam sucesso. Sem graça, uma vendedora me confirmou que aquelas estatuetas tinham o seu público. Perguntei, então, como podia ser que tal peça fosse vendida.

A resposta foi ainda mais surpreendente: "hoje, tudo está permitido".

Nos últimos dias, a Europa ficou estarrecida diante das chamas que queimam parte da Catedral de Notre Dame, em Paris.

Não era apenas um monumento católico. Mas também o coração de uma cidade, o símbolo de um país e a referência de uma cultura. Há 850 anos no mesmo local, ela foi testemunha e atriz da história do Ocidente. Suas paredes pareciam ainda ecoar a coroação de Napoleão. De seus sinos vieram os sons da liberdade.

Era uma espécie de garantia de que, apesar de tudo, uma civilização tem suas claras referências.

Mas suas chamas queimaram não apenas parte de uma história. A fumaça parecia ser um alerta de que não há como imaginar que todas as conquistas do passado estejam garantidas.

Quem imaginaria que, depois de costurar feridas profundas entre irmãos, o projeto de integração da UE seria questionado? Quem imaginaria que o maior projeto de paz da história e que substituiu a um continente em guerra seria acusado de ser a origem de todos os males?

Quem jamais poderia pensar que, sólida e tendo atravessado séculos, a catedral queimaria diante de seus habitantes?

Assim como a estrutura de Notre Dame, o bloco europeu, diante da pressão de partidos populistas e do fracasso de seus políticos tradicionais de esquerda e de direita, está sendo testado.

Na Hungria, República Tcheca e Polônia, eleições são vencidas por políticos que, com uma mistura de populismo e a capacidade de vender falsas soluções a uma população realmente abatida, se dão ao luxo de derrubar até mesmo a separação dos poderes.

No final de maio, uma vez mais, o Velho Continente será testado. A eleição ao Parlamento Europeu promete ver um número inédito de deputados descaradamente contrários ao projeto europeu.

 

As chamas não se limitam às fronteiras europeias. Estamos descobrindo que bases fundamentais de nossas democracias estão sendo abertamente questionadas, com suspeitas de envolvimento estrangeiro em eleições, a proliferação de estratégias de desinformação e chefes-de-estado prontos a disseminar o ódio.

No Brasil, em diferentes conselhos, a sociedade civil tem tido seu papel minado, enquanto testemunhamos os desafios reais que existem para que a liberdade de expressão sobreviva. Ao rescrever a história, governos tentam justificar seus atos e enterrar o que os fatos escancaram.

Pelo mundo, rumos e avanços que pareciam inquestionáveis hoje são abertamente desmontados. Nem os direitos mais básicos, consolidados há 70 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, parecem ter garantias de que poderão sobreviver.

Portanto, as chamas de Notre Dame devem servir de lição. Nada está garantido se não houver um cuidado permanente com os valores – e monumentos – que desejamos ter como pilares de nossa sociedade.

Numa simples vitrine repletas de criminosos ou no cheiro que sai de uma catedral em chamas, os sinais são claros: a sobrevivência de tais pilares da sociedade exige manutenção diária, vistoria permanente e obras ininterruptas. Sempre.

Vídeo mostra o interior de Notre Dame após o incêndio

UOL Notícias

 

https://noticias.uol.com.br/album/2019/04/15/incendio-na-catedral-de-notre-dame-em-paris.htm

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)