A pergunta que mais escuto no exterior: "o que está ocorrendo no Brasil?"
GENEBRA – Em 2001, fiz um périplo pelos Bálcãs. Na memória de muitos em Sarajevo ainda estavam os sons das bombas. A ponte de Mostar sequer havia sido reconstruída e muito menos os espíritos de tantas vítimas.
Com um veículo da ONU, eu e outros jornalistas europeus deixamos a cidade de Belgrado em direção ao interior do país. No caminho, decidimos parar em uma lojinha de beira de estrada para comprar água.
Dentro, um homem com uma jaqueta do exército e com um rifle sobre o balcão nos olhava com ar de suspeita. Falávamos inglês entre nós e o sentimento anti-OTAN era nítido naquela região.
Com uma voz dura, o dono do estabelecimento olhou para mim com raiva. E lançou em tom de desafio e com um forte sotaque:
American?
E eu respondi:
No, Brazilian.
Para que? Ele abriu um sorriso enorme e me disse:
"Matteo, Giuliana!!"
Eu não entendi nada. Apenas repetia.
No no, Jamil.
Ele não falava uma só palavra de inglês. Mas queria muito conversar comigo. Fazia gestos incompreensíveis, repetindo as palavras "Matteo e Giuliana". Em um momento, fingia chorar e dizia: Giuliana, Giuliana!
A cena surreal de um homem vestido de verde oliva, com um rifle, chorando e falando na tal da Giuliana só foi resolvido quando ele me pediu para esperar.
Abriu uma cortina e chamou sua esposa e filha. Ambas, também com amplo sorriso, vieram me ver e a filha, num inglês nível 1, finalmente explicou.
Estamos vendo na TV sérvia neste momento a novela Terra Nostra.
Nos minutos seguintes, nos tornamos grandes amigos, para a surpresa dos demais jornalistas europeus que estavam na loja. Fomos convidados a tomar um café e comer um bolo que estava sobre a mesa.
A despedida parecia ser a de velhos conhecidos, com a família na porta da lojinha acenando ao carro da ONU que partia.
Nesta manhã de sexta-feira de 2019, entro numa sala para uma coletiva de imprensa em Genebra. O evento começa e, instantes depois, levo um tapinha nas costas de um amigo jornalista. Ao me virar, vejo que ele tem um bilhete para mim.
Abro e vejo uma frase:
"Nazismo de esquerda? O que está ocorrendo no Brasil?"
Não respondi, tentando conter a risada e, ao mesmo tempo, pensar uma resposta.
Inconformado com meu silêncio, ele cochichou em meu ouvido. "Sabíamos que vocês gostavam de novelas. Mas não precisava que fossem reais".
Nas últimas semanas, posso contar nos dedos de uma mão a quantidade de vezes em que uma conversa minha com estrangeiros não ganhou o caminho: "e o Brasil, hein?"
A culpa não é apenas do atual governo, ainda que tenha ajudado muito. Tivemos a Copa, o 7 x 1, a Operação Lava Jato, a prisão de Lula, de Temer, o buraco da Olimpíada, o museu em chamas, o impeachment. Não há como construir uma imagem razoável com tal sequência de eventos.
Mas, hoje, é o surrealismo dos acontecimentos que mais chama a atenção, transformando uma imagem inicial de surpresa pelos acontecimentos desde 2014 em uma de deboche.
Em 2001, diante daquela família sérvia, eu os deixei extremamente frustrados quando me perguntaram qual era o final da novela. Eu não sabia.
Hoje, sequer arriscam fazer a pergunta sobre qual seria o próximo capítulo da nossa história.
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