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Jamil Chade

O ódio é ensinado

Jamil Chade

15/03/2019 06h54

Ainda é cedo para tirar conclusões sobre o atentado terrorista ocorrido na Nova Zelândia contra muçulmanos, num dos países mais pacíficos do mundo. Mas o que é evidente é a presença de um ingrediente recorrente em atos dessa natureza: o ódio.

Tanto entre os muçulmanos como entre os radicais de direita, não há como tratar tais atos sempre como casos isolados, abandonando o cenário e os incentivos aos quais que esses criminosos são expostos.

Se não existe um risco de uma invasão muçulmana na Nova Zelândia, se o país não está em guerra e se a pobreza não é sequer uma ameaça, de onde viria tanto ódio?

Nos últimos anos, dezenas de intelectuais, políticos e centros especializados passaram a buscar uma resposta a situações parecidas. Quase todos chegaram em uma mesma constatação: a insistência do uso discurso do ódio como instrumento de poder pode, de forma indireta, levar certos integrantes de um grupo na sociedade a passar à ação.

Liderados por pesquisadores na Universidade de Harvard, um grupo de especialistas acompanhou o discurso de líderes políticos e religiosos por anos e chegou a uma conclusão: ninguém nasce odiando o outro. Eles foram ensinados a odiar, por meio de exemplos e pela liderança de certas pessoas que escolheram grupos para transforma-los em inimigos. Nós x eles.

Em diferentes culturas, línguas e religiões, o discurso do ódio pelo mundo tem características similares. A primeira delas é a de promover o medo. O temor de que imigrantes minariam a cultura nacional, por exemplo, foi amplamente usado em eleições por partidos que buscavam a simpatia do eleitorado na Europa.

As pesquisas também revelam que o discurso do ódio frequentemente traz dados e conclusões falsas. São charlatães que vendem soluções a falsos problemas. Tão falso o problema quanto a ideia de que muçulmanos poderiam ser uma ameaça à sociedade na Nova Zelândia.

Dados apontam que a população que pratica o islã na ilha não passa de 1,1% dos habitantes do país. Segundo a Universidade de Waikato, os muçulmanos são, de fato, mais educados e qualificados que a população cristã.

Mas, assim como em vários países do mundo, o discurso anti-imigração também faz parte do cenário da Nova Zelândia. Seria uma enorme irresponsabilidade culpar um partido pelas mortes de hoje. Mas o antídoto ao extremismo precisa partir de uma nova retórica por parte de todos. Ao longo dos anos, os líderes de certos partidos populistas na Nova Zelândia passaram a acusar a imigração asiática de ser um fator que permitia a "importação de atividades criminosas".

Na campanha eleitoral de 2017, eles denunciaram as políticas frouxas dos partidos tradicionais que "permitiram muitas pessoas a entrar" na Nova Zelândia. Eles ainda completaram: a imigração teve um "impacto devastador" na economia do país.

Num post nas redes sociais em janeiro de 2017, um outro político local alertou como a imigração havia atingido "níveis sem precedentes". "Não me surpreende que a população tenha dificuldades para encontrar casas e trabalho", declarou. "Imigração é ótimo para os imigrantes. Eles chegam ao paraíso em comparação ao que tinham. Mas é longe do paraíso para a população local lutando para encontrar uma casa, um trabalho, um lugar no hospital e escolas".

Um ano depois, ele pediu que associações muçulmanas "limpassem suas casas" para evitar a infiltração de eventuais terroristas.

Líderes religiosos e políticos precisam entender que, mesmo sem qualquer intenção criminosa, um discurso como esse tem o potencial de sair do controle quando atinge um grupo da população com princípios instáveis, condições psicológicas vulneráveis e uma educação questionável.

Hoje, diante do ataque terrorista, o choque não foi apenas a quantidade de mortos. Mas também a constatação de que um dos autores era um radical de extrema-direita com cidadania australiana.

Nas imagens das televisões da Nova Zelândia, familiares das vítimas buscavam informações diante da mesquita. Chorando, uma mãe disse: "Somos iraquianos. Mas vivemos aqui há 20 anos".

A horrível ironia é que algumas das vítimas eram refugiados que tinham escapado da guerra para viver em um porto seguro.

O terrorista de fato era estrangeiro. Mas não exatamente do grupo que se imaginava.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)