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Jamil Chade

Afinal, que sociedade queremos ser?

Jamil Chade

27/04/2019 15h42


GENEBRA – Sócrates – o filósofo – já dizia: a vida não examinada não vale a pena ser vivida. No atual debate que existe no MEC, essa frase pode parecer ultrapassada. Em alguns anos e dependendo das políticas adotadas, não me surpreenderia que alguns acabem só sabendo da existência do outro Sócrates, o doutor.

Mas a realidade é que tal princípio é absolutamente atual, principalmente para uma nação que tenta superar divisões profundas. Mas para que uma sociedade embarque nesse exercício diário de examinar seu passado, sua existência e saber para onde vamos, são as disciplinas como filosofia, ciências sociais e humanas que nos darão os instrumentos.

Quando tais instrumentos são considerados como luxo ou avaliados como não sendo um papel do estado, a pergunta óbvia que faço é a seguinte: que sociedade exatamente estamos escolhendo ser?

Sim, tais disciplinas podem ser substituídas por outras supostamente mais práticas, com um resultado imediato talvez mais confortável para aqueles que sofrem de miopia. Nos EUA, dezenas de universidades estão sendo pressionadas, diante de cortes de orçamentos, a rever seus departamentos de humanas. Muitas outras já iniciaram uma campanha para conseguir sobreviver e "provar" sua utilidade à sociedade.

No Reino Unido, o movimento também é uma realidade, o que levou Julian Baggini a escrever um poderoso texto em dezembro de 2018 sobre o papel da filosofia em nossas vidas, nas vidas de uma nação.

Segundo Baggini, uma sociedade sem espaço para tais carreiras em suas universidades pode até ser mais treinada. Talvez ela também será administrada de forma mais eficiente. Mas um número cada vez menor de pessoas vai entender a que serve exatamente essa tal eficiência.

Se não encontrarmos recursos para desenvolver tais instrumentos de reflexões e consciência, estamos eliminando de nossa sociedade, acima de tudo, sua capacidade de refletir sobre nossa existência, sobre nosso futuro.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma lei aprovada em Washington aprofundaria a estratégia americana de focar seu desenvolvimento na democratização da educação. Mas o que pesquisas hoje revelam é que uma iniciativa que tinha como objetivo treinar cidadãos para o mercado de trabalho acabou também revolucionando outros segmentos.

A G.I. Bill de 1944 permitiria a todos os americanos que tinham retornado do conflito um acesso praticamente livre para estudar. De quebra, a lei acabou derrubando os muros de universidades a milhares de jovens de classe média e baixa que jamais teriam tido acesso.

Em 2006, o escritor Edward Humes resumiu o impacto dessa manobra do governo e revelou que aquele acesso havia transformado "o Sonho Americano" para sempre. Tal iniciativa de 1944 gerou, ao longo das próximas décadas, três ministros da Corte Suprema, três presidentes, uma dúzia de senadores, mais de 20 ganhadores do prêmio Pulitzer, 238 mil professores, 91 mil cientistas, 67 mil doutores e milhares de outros profissionais. Isso sem contar com 14 ganhadores do Prêmio Nobel. Para cada um dólar investido em educação, o retorno foi de sete para a economia.

Mais importante do que tudo isso, Humes alega que a iniciativa permitiu educar milhões de cidadãos que transferiram para suas vidas diárias as reflexões de ciências humanas e criar um sentimento de uma comunidade de destino.

O estado assumiu seu papel na educação, inclusive aquela que visa pensar e questionar o próprio estado e a sociedade. O resultado foi um fortalecimento da democracia e, ao longo de décadas, a derrubada de discriminações profundas que se mantinham na sociedade americana.

Isso tudo por conta do fato de que locais de criação e pensamento que eram bastiões da elite ganharam um novo público. Carreiras até então destinadas apenas a quem poderia pagar passaram a ser democratizadas, inclusive a filosofia.

Não há nada contra focar a estratégia de ensino no treinamento de profissões e direcionar esforços a atender ao mercado. Mas isso não pode ocorrer jamais em detrimento da reflexão de quem somos. E tal exercício não pode ser um privilégio daqueles que tem recursos para pagar.

Se depois de querer mudar o passado, o MEC agora se empenhar em reduzir a capacidade de pensarmos – juntos – nossas existências e nossa sociedade, o que também estaremos eliminando é nosso futuro.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)