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Jamil Chade

Investigações da Lava Jato chacoalham sistemas políticos na América Latina

Jamil Chade

22/03/2019 04h00

A argentina Cristina Kirchner, investigada na Operação Lava Jato de seu país, assim como muitos outros presidentes na América Latina (MARTIN ACOSTA/REUTERS)

Além das prisões de Temer e Lula no Brasil, inquéritos levaram mais de uma dezena de países da região a colocar sob suspeita seus presidentes atuais ou passados. No total, testemunhas afirmam que mais de mil políticos e funcionários públicos no continente possam ter sido subornados.

 

GENEBRA – "Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos."

Quando Eduardo Galeano publicou sua obra "As Veias Abertas da América Latina", parte de seu relato tinha como objetivo escancarar a captura do continente por parte do capital estrangeiros.

Hoje, são investigações internacionais, envolvendo procuradores de diferentes países e autoridades em diferentes partes do mundo, que revelam que essas veias continuam abertas. A captura continua. Mas desta vez pelo crime organizado.

Ao longo dos últimos cinco anos, o que começou como Operação Lava Jato no Brasil revelou como uma parcela dos políticos locais da América Latina transformou os sistemas democráticos em balcões de negócio, enriquecimento próprio e financiamento de seus projetos de poder.

De esquerda ou direita, populistas ou tradicionais políticos, religiosos ou revolucionários, políticos de todas as vertentes foram implicados. Além de Michel Temer e Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, a lista de governos que caíram ou foram detidos inclui desde economias pequenas da América Latina a alguns dos principais nomes políticos do continente.

Testemunhas que foram ouvidas por autoridades chegam a estimar que mais de mil políticos e funcionários públicos tenham sido subornados ao longo dos últimos anos, em troca de contratos bilionários ou simplesmente a manutenção do poder.

No Peru, por exemplo, os três últimos presidentes estão detidos ou sob suspeita de receber dinheiro da Odebrecht. Mesmo quem liderou a oposição, Keiko Fujimori, também foi investigada. O presidente Martin Vizcarra é suspeito de receber recursos da empresa brasileira entre 2006 e 2008, enquanto Pedro Pablo Kuczynski teve de renunciar em 2018. Alan Garcia teve seu pedido de asilo recusado no Uruguai, enquanto Alejandro Toledo e Ollanta Humala estão na mira da Justiça.

No Equador, o ex-vice-presidente Jorge Glas foi condenado a seis anos de prisão por ter recebido US$ 13,5 milhões em propinas da Odebrecht. Em setembro do ano passado, o MP do Equador anunciou a abertura de investigações contra oito pessoas que teriam recebido recursos ilegais da Odebrecht. Entre eles está o ex-presidente Rafael Correa, que hoje vive na Bélgica e solicita asilo político por se considerar perseguido.

No Panamá, as investigações esmiuçaram mais de 14 contratos no governo de Martín Torrijos, que terminou em 2009, e Ricardo Martinelli, entre 2009 e 2014. Já no atual governo de Juan Carlos Varela, que termina neste ano, são cinco obras sob análise, incluindo a Linha 2 do metrô avaliada em mais de US$ 2 bilhões. No total, são mais de 70 políticos sob suspeita no país.

Em El Salvador, o ex-presidente Maurício Funes é investigado por desvios e por ter tido sua campanha eleitoral financiada de forma ilegal. Funes, porém, fugiu em 2016 para a Nicarágua, de Daniel Ortega, que lhe concedeu asilo político.

Na Colômbia, a pessoa que conduziu a campanha eleitoral de Juan Manuel Santos, Prêmio Nobel da Paz, sugeriu que ela havia sido beneficiada por dinheiro ilegal da Odebrecht. Santos se defendeu alegando que não havia autorizado sua campanha a receber os valores.

As investigações em Bogotá ainda foram marcadas pela suspeita de envenenamento de testemunhas e mortes.

Uma situação mais complicada é a da Venezuela, onde a ex-procuradora-geral Luisa Ortega denunciou o envolvimento da Odebrecht no pagamento ilegal para a campanha de Nicolás Maduro e acabou expulsa. Mas investigações na Suíça também apontam que o então candidato da oposição, Henrique Capriles, também foi beneficiado por dinheiro ilegal da empresa brasileira.

Nos EUA e em Andorra, as investigações revelam uma ampla rede de corrupção em Caracas, envolvendo bilhões de dólares.

Na Guatemala, as investigações da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala levou a um pedido de prisão contra o ex-presidente Otto Pérez, assim como de sua vice, Roxana Baldetti. Se o país inteiro inicialmente aplaudia os trabalhos contra a corrupção, a história mudou radicalmente quando as mesmas investigações se aproximaram ao atual presidente Jimmy Morales. Ele expulsou do país o órgão da ONU que conduzia a investigação e declarou seu chefe, Ivan Velasquez, como "persona non grata" no país.

O escândalo da Odebrecht na República Dominicana ainda atingiu em cheio o governo do presidente Danilo Medina, após a prisão um ministro e de outras dez pessoas.

Na Argentina, as suspeitas rondam mais de uma dezena de ministros e funcionários de alto escalão dos governos de Néstor Kirchner (2003-2007) e de Cristina Kirchner. Enquanto isso, na Bolívia, as investigações atingiram o ex-presidentes e candidatos, como Carlos Mesa.

"O que vemos é que, em muitos locais da América Latina, a corrupção não foi ocasional. Mas era sistêmica, por parte das elites e do crime organizado. Como tal, o que se viu foi a captura do Estado", alertou o colombiano Ivan Velasquez, chefe das investigações internacionais na Guatemala.

Em muitos dos casos, ele alerta que apenas agora a dimensão da corrupção começa a ser entendida, ainda que haja uma percepção de que cinco anos da Lava Jato tenham sido suficientes para revelar mecanismos de subornos.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)