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Jamil Chade

Pornografia é 'única informação' do jovem, diz autor atacado por Bolsonaro

Jamil Chade

10/03/2019 04h00

Criador do que foi chamado de "kit gay" pelo presidente Jair Bolsonaro, Zep fala sobre a dificuldade do ensino da sexualidade, dos riscos de não informar e ironiza presidente em um desenho dedicado ao político brasileiro.

GENEBRA – Ainda durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro acusou um certo livro de ser "uma coletânea de absurdos que estimula precocemente as crianças a se interessarem pelo sexo".

Ele ainda apontou que a obra era "uma porta aberta para a pedofilia" e um "kit gay". Anos antes de ser escolhida como ministra de Direitos Humanos, Damares Alves também declarou em cultos que o livro era "terrível".

"Olha o livro, irmão", disse. "Olha os livros com desenho infantil 'como transar'. E olha a linguagem", pedindo desculpas à audiência por estar usando uma "linguagem porca".

Mas, para seu autor, Philippe Chappuis, a obra "Aparelho Sexual e Cia." tem um propósito muito diferente: responder todo o tipo de pergunta em relação ao sentimento amoroso, da puberdade.

Zep, como Chappuis é chamado, me recebeu em sua casa em Genebra no final do ano passado e negou que sua obra fosse uma promoção da homossexualidade. Em todo livro, o assunto merece apenas cinco linhas. "Não é o 'Kama Sutra"', comparou.

O autor fez questão ainda de fazer um desenho ironizando Bolsonaro e alertou que é justamente a imposição de tabus é "hipócrita" e "abre um terreno para perigos como a pedofilia". O autor não esconde: Bolsonaro fez a tiragem de seu livro no Brasil se multiplicar. Eis os principais trechos da entrevista, concedida no final de 2018:

UOL – O que é o livro que o sr. publicou?

A questão era a de buscar perguntas que são perguntas de crianças, e não perguntas de pedagogos. Às vezes, nos esquecemos da criança que éramos. Coletamos essas perguntas com pessoas que trabalham com a educação sexual nas escolas. Pegamos perguntas simples, que podem parecer até estúpidas ou engraçadas. Por exemplo, quando uma criança pergunta se estará apaixonada para sempre. Aos oito anos, essa é uma questão real. Também sobre a transformação do corpo.

E ter tudo isso de uma forma muito livre. Uma criança não tem tabu. Elas falam de coisas naturalmente entre elas. Titeuf [o personagem] serve de guia, já que ele sempre entende as coisas de uma forma mais lenta que os demais. O guia vai completar agora 20 anos.

Por qual motivo o sr. decidiu fazer esse guia?

Sempre quis fazer algo assim. Como Titeuf esteve sempre associado à sexualidade, já que ele se colocava perguntas sobre o sentimento de amor, de puberdade e que ele estava associado a isso pela imprensa, mesmo que fosse apenas uma parte do personagem, pensei em um manual sobre a sexualidade.

Quando eu propus isso ao meu editor, ele ficou branco. Já tínhamos vários problemas com interdições e muita gente que tinha medo de abordar esse assunto.

Também por aqui?

Sim, na França, Suíça, Bélgica. No Canadá, por anos grupos tentaram proibir Titeuf nas bibliotecas escolares. A partir do livro, houve uma exposição em Paris, montada em 2007. Ela fez uma turnê de quase dez anos por vários países e ela voltou a Paris em 2013. De novo, houve um comitê para tentar proibi-la.

O assunto continua criando medo. Assim que falamos de crianças e sexualidade, o medo se instala. E isso é facilmente manipulado.

O comitê que queria proibir a exposição enviava uma carta aos pais dizendo: vocês estão de acordo em permitir que suas crianças visitem uma exposição pornográfica? Claro que os pais diziam não. E eu tampouco deixaria meus filhos. Mas não há pornografia nesse livro. No caso de Bolsonaro, seu enfoque é a homossexualidade, que é seu cavalo de batalha.

Além da questão do medo, houve alguma espécie de manipulação política do livro?

Na França não é a política. Pelo contrário. Eles sabem que é um assunto problemático e continua sendo um assunto muito complicado para ensinar. Os pais não sabem como fazer, as escolas dizem que não é nossa missão. A igreja, por muito tempo foi o principal lugar de ensinamento da sexualidade. Mas com uma visão muito quadrada, normativa.

Hoje, como não há ninguém [ensinando], muitos jovens chegam à puberdade sem saber como funciona. E, de fato, a única informação que eles têm é a pornografia. Todas as crianças têm acesso a pornografia pela internet. Portanto, quando toda a informação que se tem sobre a sexualidade é a pornografia, não é uma forma muito serena de entrar no assunto.

O guia, portanto, continua a ter uma utilidade, mesmo que desde então outras coisas já foram feitas e vão além. Mas gosto de tratar disso nos álbuns de Titeuf, já que é um assunto que faz parte do cotidiano das crianças, mesmo quando eles ainda não têm uma vida sexual ou são adolescentes. Eles já têm uma ideia e essa ideia pode ser muito preocupante.

O sr. consultou crianças para fazer o livro?

Crianças, pedopsiquiatras, médicos e muita gente que trabalham com o assunto no terreno, como enfermeiras que trabalham em escolas. Ao final, pedimos que pedopsiquiatras pudessem ler o livro. Foi engraçado e mostra exatamente essa situação. O diretor da Associação Francesa de Pedopsiquiatria leu e disse que era muito bom. Então pedimos sua validação e ele disse não, dizendo que não queria seu nome citado.

E eles não acharam que era muito cedo para falar sobre o assunto? Muita gente acha que é muito cedo falar disso aos oito ou dez anos.

Não. Na minha opinião, as crianças de oito anos se colocam a questão sobre como funciona. Portanto, manter a ignorância jamais é uma boa ideia. Além disso, o desenho permite mostrar algumas coisas que não são frontalmente agressivas. Sabemos hoje na França que muita criança de dez anos já viu pornografia. Portanto, dizer que não se deve mostrar isso às crianças é de uma hipocrisia enorme. Significa ignorar o mundo no qual vivemos. Mas é sempre o caso. Como adulto, temos a tendência em pensar que o mundo é o mesmo daquele que existia quando éramos crianças. Isso parte de um bom sentimento. Com muita frequência, falamos isso para proteger nossos filhos. Mas nesse sentido proteger é esconder todas as coisas que os podem inquietar.

Quando eu era criança, tudo o que me escondiam me deixava extremamente inquieto. Esconder tem um significado de que é perigoso, é grave. Depois, quando descobrimos a sexualidade, entendemos que não é tão grave assim. Eu tinha 15 anos quando a Aids apareceu e o discurso das escolas sobre a sexualidade se transformou. Foi estabelecido que era necessário informar as crianças. Mas informar somente sobre o que era perigoso. A informação, portanto, era sobre Aids e pedofilia. As ameaças. O que era importante. Mas, quando a sexualidade se reduz a isso, meu Deus, que assunto atroz.

Sobre o trecho que Bolsonaro cita sobre a homossexualidade, o sr. vê da mesma forma?

Em todo o livro, o trecho sobre a homossexualidade é só uma pergunta. Mostra muito bem o personagem [Bolsonaro], que tem um grande problema, já que ele parte disso e diz que o livro é sobre esse assunto. Mostra que ele considera que toda a educação sexual é a homossexualidade. Reflete mais sobre ele que sobre o livro. Mas a ideia era a de abordar o maior número possível de perguntas para as crianças que ainda não estão na puberdade. Não precisamos entrar em detalhes. Não é o "Kama Sutra". Não há uma explicação técnica. Mantemos bem simples. Não é um kit de explicação sobre a vida sexual. Mas sim informação sobre o que vai ocorrer.

Agora, está claro que muitas crianças são homossexuais. A homossexualidade não é algo que se desenvolve obrigatoriamente na puberdade. Existem garotos que já estão apaixonados por outros garotos e meninas que também estão apaixonadas por outras. Além disso, sabemos que a essa idade, o sentimento de amor e amizade é frequentemente confuso ainda. Portanto, a ideia não era a de fechar as coisas. E dizer: sim, as vezes é confuso e não sabemos se estamos apaixonados, o que é o amor.

Algumas pessoas vão se dando conta que vão se apaixonando e que esse sentimento vai se afirmar por alguém do mesmo sexo e isso se chama homossexualidade. No livro, não há um julgamento se é normal ou não é normal. A ideia é de não dizer essas coisas no livro. Mas, a uma criança que sente isso, a ideia é a de não lhe dizer: meu Deus, você é um anormal. Existem tantas pessoas que foram destruídas por causa disso. É importante hoje de não fazer a homossexualidade uma doença já na infância.

 

Há uma promoção da homossexualidade?

Não. É apenas não a condenar. O guia ele foi apoiado aqui [em Genebra] pelos círculos protestantes e católicos.

Quando Bolsonaro disse que era um kit gay, como o sr. reagiu?

Francamente, eu já ouvi tantas coisas. E de pessoas que nem sequer leram. Quando houve a exposição, foi dito que era Kama Sutra para crianças, pornografia, uma exposição destinada aos pedófilos. Ouvi isso de detratores. Com alguns deles eu me reuni e pedi que me mostrassem onde está o problema. Alguns foram à exposição e não conseguiram mostrar uma coisa que eles diziam. Mas aí alegavam que, enfim, era muito perigoso entrar nesse assunto. Alguns reconheceram que não havia nada.
No caso de Bolsonaro, quando ele mostra a página com o buraco, não vejo o que há de gay. Naquela página, há um homem e uma mulher. É uma página muito heterossexual.

Quando foi a primeira vez que o sr. ficou sabendo dos ataques que sofria de Bolsonaro?

A primeira vez foi um vídeo dele, já de alguns anos. Foram amigos brasileiros que mandaram. Ficava claro que ele não estava contente e mostrava já essa página naquela época. Ele já treinou por anos isso. Mas eu pensei: bom, um senhor que não gostou do livro. Estamos numa democracia. Mas vejo que ele tem 8 milhões de seguidores. Depois disso, entendi que era um ativista político com ideias muito reacionárias, homofóbico. Dois anos depois, meu filho estava vivendo no Brasil por alguns meses e me disse que aquela pessoa corria o risco de ser o presidente do País. Eu pensei: não é possível? Mas falamos a mesma coisa de [Donald] Trump.

O que o sr. sentiu quando viu Bolsonaro chamando seu livro de "kit gay" no Jornal Nacional durante a campanha eleitoral?

Um amigo meu brincou: teu agente no Brasil é genial. Ele fez uma promoção incrível para o guia no Brasil. Antes dele, a tiragem era de 5 mil exemplares. Hoje, acho que estamos em 12 mil em apenas dois meses. Evidentemente, o guia jamais foi distribuído nas escolas. Houve apenas um local que comprou cinco livros para cinco bibliotecas. Mas é incrível pensar que seu cavalo de batalha é esse guia. Ele é um especialista da fake news. Ele foi a um programa de TV com esse guia, como se fosse um elemento importante de seu programa.

O sr. tem alguma sugestão ao Ministério da Educação sobre como tratar a infância e a sexualidade e a juventude brasileira?

A percepção que eu tenho do Brasil é que os extremos estão se enfrentando. Há pessoas como Bolsonaro, extremas, e que diz coisas atrozes, e de outro lado há o movimento LGBT que reivindicam de forma muito extrema as coisas e de maneira muito provocadora. Portanto, estão colocadas sempre em conflito. Isso, visto da Suíça, é muito bizarro. Aqui, jamais estamos na confrontação. Sempre tentamos estar de acordo. Agora, construir uma educação nacional, se já estamos nessa ideia de afrontamento, é um começo ruim. Eu penso que o tabu foi inventado pelos adultos que têm medo. Por adultos que algo não funciona em suas vidas. Mas não vou julgar os motivos. Mas eles têm medo das coisas e criam tabus. Esses tabus sempre geram coisas ruins. Damos um terreno formidável à pedofilia se não explicamos as coisas.

Na Suíça, houve um apoio oficial ao livro?

Não um apoio oficial financeiro. A exposição foi para Genebra e a exposição foi colocada no programa escolar. A exposição foi proposta a todas as escolas de dez e 12 anos. Muitas classes participaram.

Na França, também foi proposto para a educação nacional. Houve mais de 1 milhão de visitas, em grande parte de classes de escola e crianças. Hoje, tenho já adultos que, em sua infância, leram o livro. E eles me dizem que dão a suas crianças, ou deixam em seus quartos. Como pais, nem sempre é fácil. Eu tenho cinco filhos e nunca sabemos se é muito cedo ou tarde demais para falar do assunto. Além disso, as crianças nem sempre querem falar disso com os pais.

No sistema educacional, aqui temos em todo o programa apenas dois cursos de 45 minutos cada um. Ou seja, se você falta em um deles, tua vida sexual não irá bem. No fundo, o que há é a internet e pornografia. Portanto, propor um outro espaço é importante.

Enfim, foi um livro que foi traduzido em 25 línguas e na França a venda foi de 2 milhões de exemplares. Na China, a questão da homossexualidade foi suprimida. É lamentável. Mas o que eu não queria é que, nesse trecho da homossexualidade, fosse dito outra coisa, que fosse apresentado como uma doença. O editor deixou claro que, se essa questão não fosse retirada, não receberiam o visto para publicar um livro. Portanto, continua sendo um assunto que dá medo. Eu que cresci nos anos 70, que víamos a sexualidade como algo simpático. A Aids mudou o tom. Agora, voltamos a um tempo de prudência. Dizemos que não devemos falar de certas coisas, pois é perigoso. É incrível dizer que é perigoso informar.

Há alguma ideia de uma exposição no Brasil?

Estou esperando um convite do governo brasileiro que certamente vai chegar.

 

 

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)