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Jamil Chade

Damares lança candidatura para órgão da ONU atacado por Bolsonaro

Jamil Chade

25/02/2019 08h04

Em primeiro discurso internacional, ministra fez promessa de que não sai de órgão atacado por Bolsonaro durante campanha eleitoral. "Não serve para nada", disse o então candidato em 2018. Mas, próximo do primeiro aniversário do assassinato de Marielle, Damares não menciona a vereadora que causou comoção na ONU. 

 

GENEBRA – Perto da data que marca um ano do assassinato de Marielle Franco, que causou uma comoção internacional e gerou até mesmo uma reação da ONU, o governo de Jair Bolsonaro ignora o fato durante seu primeiro discurso nas Nações Unidas. Nesta segunda-feira, a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, fez sua estreia internacional, num discurso em Genebra diante do Conselho da ONU para os Direitos Humanos, ela não citou uma só vez a morte da vereadora, ocorrida em 14 de março de 2018, e que, até hoje, não gerou qualquer tipo de prisão ou denúncia formal.

Acompanhada por seguranças, Damares chegou pela manhã desta segunda-feira à sede da ONU e terá diversas reuniões nos próximos dois dias.

No primeiro dia no cargo, o governo Bolsonaro recebeu uma carta enviada por relatores da Organização das Nações Unidas (ONU) que cobraram dele respostas urgentes para esclarecer o assassinato de Marielle Franco. O assassinato da vereadora e de seu motorista, Anderson Gomes, completa 365 dias sem que ninguém tenha sido detido.

Ao tomar a palavra nesta segunda-feira, a ministra iniciou uma série de promessas, num claro esforço para desfazer uma péssima imagem internacional. Mas não citou, em dez minutos de discurso, um dos fatos mais comentados na ONU: a morte da vereadora e a falta de avanços nas investigações.

Eu fico – Um dos anúncios feitos pela ministra foi o lançamento da candidatura do Brasil para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU, a partir de 2020. A eleição ocorre em outubro e o governo fazia mistério se buscaria um novo mandato no órgão com 47 membros. "O Brasil continua plenamente engajado no sistema internacional de direitos humanos", disse. Segundo ela, esse compromisso é "inabalável".

Durante a campanha eleitora, Bolsonaro prometeu que "deixaria a ONU". Depois, explicou que ele se referia ao Conselho de Direitos Humanos da entidade, criticado pelo então candidato por conta de sua recomendação em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

"Houve um ato falho meu e ai já se começou dizendo que eu sairia da ONU", explicou na época o presidente. "Eu jamais pensaria em sair da ONU. É sair do conselho de direitos humanos da ONU", disse. "Não serve para nada essa instituição", atacou, ao criticar a decisão sobre Lula. Na realidade, a recomendação havia sido tomada por outro órgão, o Comitê de Direitos Humanos.

Na ONU, existia o temor de que, depois da saída de Donald Trump do órgão, o mesmo caminho seria adotado pelo Brasil.

Em outubro, porém, a eleição conta com apenas dois candidatos para duas vagas destinadas para a América Latina. Além do Brasil, o outro candidato é a Venezuela.

Damares também garantiu que o Brasil vai voltar a receber as visitas e inspeções de relatores da ONU, depois que o processo foi suspenso em 2018. Segundo ela, isso ocorreu por conta dos "processo eleitoral". Diversos relatores criticaram a postura do País de não recebe-los.

Também num esforço para provar que o Brasil não vai seguir o que Bolsonaro anunciou em sua campanha, ela garantiu, por exemplo, que o presidente tem um "compromisso com os padrões mais elevados de direitos humanos, a defesa da democracia e estado de direito". Prova disso, segundo ela, é o fato de Bolsonaro ter "fortalecido" o ministério de Direitos Humanos.

Em seu discurso, a ministra garante seu compromisso no combate ao racismo e promete sua "determinação em combater violência contra LGBT". Num esforço para desfazer críticas, ela prometeu "proteção aos corajosos defensores de direitos humanos".

Há poucos dias, ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, questionou a relevância de Chico Mendes. Damares, porém, insiste que o Programa de Defesa de Direitos Humanos vai agora explicitamente incluir ativistas ambientais e comunicadores sociais. Sobre Marielle, porém, nenhuma palavra.

Brumadinho – Numa outra sinalização ao mundo, ministra ainda citou a tragédia de Brumadinho e insistiu que o setor privado precisa ser responsabilizado em termos de direitos humanos. Para ela, as mortes em Minas Gerais "demonstraram que ações ou omissões corporativas podem ter consequências sobre direitos humanos". Segundo ela, o governo Bolsonaro tomou "medidas firmes para evitar novos desastres no futuro".

Damares deixou claro sua posição ainda sobre "o pleno exercício de todos ao direito à vida, da concepção e à segurança da pessoa". Segundo ela, a prioridade de seu trabalho será a defesa dos direitos das mulheres, em especial assédio sexual e feminicídio. Mulheres indígenas e quilombolas também receberão atenção.

Ela ainda prometeu fortalecer a FUNAI, agora sob seu ministério, e garantiu que a transferência de demarcação de terras ao INCRA não vai afetar os direitos dos povos.

Damares, em seu discurso diante da ONU, apontou que os povos tradicionais vão ser tratados de "de uma forma especial" pelo governo e lembrou que o vice-presidente, Hamilton Mourão, "é indígena", assim como o presidente da FUNAI, Franklinberg Freitas. "Reafirmo o compromisso do governo com a plena proteção dos povos indígenas", disse, se apresentando como uma "aliada incondicional".

A ministra ainda usou seu discurso para citar sua filha, "a indígena mais linda do mundo". Ela foi alvo de uma polêmica aberta por reportagens da revista Epoca.

A infância é outra de suas prioridades, o que ela apresenta à ONU como um prioridade pessoal. Uma campanha, segundo ela, será lançada contra suicídio de crianças e jovens. Com a meta de fortalecer os "laços familiares", ela ainda aponta para o fortalecimento do Bolsa Família e a inclusão de um bônus de Natal.

Seu plano é ainda a de regular escolas em casa, além de adotar uma agenda para promover "ética e cidadania" em programas escolares.

Damares, pastora, também falou em religião. "Somos um país laico. Mas não um país laicista", disse. "No Brasil, todas as expressões religiosas são igualmente respeitadas e protegidas, assim como a opção de não ter uma religião", afirmou. Ela lembrou que Bolsonaro adotou lei que permite que estudantes possam faltar às aulas ou exames em dias em que suas religiões possam proibir.

A ministra ainda apontou para a "relação entre a corrupção e as violações de direitos humanos". "Precisamos manta ao Brasil e ao mundo uma mensagem que a luta contra o crime abre os caminhos para a realização de direitos fundamentais". Ela lembra como governo criou comete inter-ministerial para monitorar violações.

A ministra concluiu seu discurso na ONU em tupi, "Kuekatu reté", e na língua brasileira de sinais (Libras). Em ambos os casos, com um significado de "obrigado".

Críticas – Antes de Damares Alves falar, porém, ela teve de ouvir duros recados, mesmo que indiretos. A cúpula da entidade insistiu sobre as ameaças que existem aos direitos humanos e criticaram posições adotadas por governos de cunho populista e de extrema-direita. Vários dos pontos criticados são, de fato, defendidos pelo governo Bolsonaro.

Maria Espinosa, presidente da Assembleia Geral da ONU, chamou a atenção para o retorno em força do "nacionalismo". Ela ainda louvou o Pacto de Migração, mecanismo que o governo Bolsonaro optou por abandonar.

Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, lembrou o que significa viver sob uma ditadura e alerta para o fato de que os direitos humanos estão perdendo espaço. Ele também denunciou a proliferação do discurso de ódio por partidos políticos. "Os pilares da humanidade estão sendo enfraquecidos", disse.

O português, de uma forma dura, ainda denunciou a "inundação de mentiras" divulgadas por governos e partidos que optaram por não aderir ao Pacto de Migração.

Guterres também saiu em defesa dos acordos para lidar com o meio ambiente, alertando que a situação é grave e que as mudanças climáticas são reais. No Itamaraty, o comando da diplomacia brasileira questiona tal visão.

Sem citar nomes, Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, mandou um recado aos governos que vem adotando uma postura de questionamento. "Hoje, ouvimos às vezes os direitos humanos sendo dispensados como sendo supostamente "globalista", como oposto aos interesses patrióticos de um governo soberano".

Na nova chancelaria brasileira comandada por Ernesto Araújo, as críticas ao "globalismo" tem sido constantes.

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UOL Notícias

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)