Diplomacia tradicional da Europa, suíços alertam para ameaças à democracia
Em estudo encomendado pelo governo e que serve de base para a elaboração da política externa de uma das diplomacias mais tradicionais do mundo, o alerta é de que há um surgimento cada vez mais forte de um "capitalismo sem pluralismo político"
GENEBRA – Um levantamento realizado por especialistas independentes para ajudar a fundamentar a estratégia de política externa da Suíça para os próximos dez anos constata: o estado de direito, a democracia e os direitos humanos estão hoje sob ameaça. E não há como saber se isso é algo passageiro ou uma transformação fundamental.
Centro de uma ampla tradição democrática e detentora de uma das diplomacias mais respeitadas no mundo, a Suíça tenta se moldar para o futuro. Seu tamanho modesto e pressionada entre as grandes potências obrigou o país a optar por uma postura de neutralidade e criar uma rede diplomática habilidosa para sobreviver a diferentes guerras mundiais e conflitos europeus.
Agora, Berna volta a olhar ao futuro para tentar se planejar, num esforço que chama a atenção para seus resultados sobre, de fato, o que está ocorrendo pelo planeta.
Para isso, o governo convocou um grupo de trabalho que, por um ano, mapeou a situação internacional. Os resultados servirão para ajudar a definir a estratégia de inserção do país no mundo, assim como elaborar meios para proteger seus interesses soberanos.
Ao traçar uma avaliação do cenário atual, porém, os especialistas foram enfáticos em alertar sobre o fato de o mundo estar revivendo uma política das superpotências, em que interesses de poucos determinarão o futuro de muitos. A constatação é inequívoca: a democracia está ameaçada.
Se por algum tempo esse debate permeou os fóruns acadêmicos, sua introdução num documento oficial que serve de base para a elaboração de uma estratégia diplomática revela que a preocupação deixou de ser meramente teórica e já faz parte dos cálculos daqueles que desenham a política externa.
"A ordem internacional está sob pressão", aponta o documento. "A crescente importância dos valores não-ocidentais levaram a uma erosão da ordem internacional liberal", disse.
"O estado de direito, e com ele a democracia e os direitos humanos, estão sendo colocados em questão. O dinheiro internacional público é colocado sob forte pressão", constata.
"Em muitos locais, a liberdade de expressão vive restrições. A frequência pela qual fatos são confrontado por pseudo-fatos – e não apenas nas autocracias – é preocupante", diz o levantamento.
Para os especialistas, é difícil hoje dizer se essas constatações fazem parte de uma "recessão temporária onde uma inversão real de tendência, depois de anos de progresso".
Lei do mais forte
Na avaliação do documento de estratégia de política externa, os suíços não escondem o temor com o fato de que os tratados sobre o controle de armas tem sido ignorados. Na avaliação deles, esse é um dos pontos centrais do enfraquecimento atual da ordem internacional. "A tendência é ao rearmamento", alertam. O documento não exclui nem mesmo uma corrida armamentista entre Rússia, EUA e China.
Segundo o documento, a estabilidade estratégica será "difícil" de ser garantida em tal contexto. Há também um risco de uma utilização abusiva do ciberespaço para motivos políticos, de monitoramento e de defesa militar.
"Dadas às divergências crescentes entre os estados-membros, várias organizações multilaterais lutam para conservar sua capacidade de ação. A lei do mais forte se acentua, especialmente na segurança e na economia", alerta.
Mas a avaliação aponta também para o impacto que teve a crise financeira de 2008. De acordo com o documento, a interdependência mundial vai continuar. "Mas ela não será tão intensa como antes da crise financeira de 2008", alertam. "Cada vez mais, observa-se uma revisão dessa tendência, um novo centro sobre o nacional e o local", apontam.
Hoje, segundo os especialistas, "os valores liberais não são mais associados automaticamente à prosperidade". "Em seu lugar, um conceito ganha um sucesso crescente: o capitalismo sem pluralismo político", apontam.
Potências
No cenário elaborado sobre os próximos dez anos no mundo, o que os especialistas ainda apontam é para o fato de que rivalidade entre as grandes potências dominará todas as decisões.
"A rivalidade das grandes potências terá um impacto crescente nas relações internacionais – em termos estratégicos, econômicos e tecnológicos", apontam. "As tensões geopolíticas estão aumentando. Cada vez mais, a defesa de interesses exige a utilização dos meios de poder. O nacionalismo e o proteccionismo estão voltando com força", disseram.
Além de Rússia e UE, os dois atores principais dos próximos dez anos serão certamente os americanos e chineses.
"Por enquanto, os Estados Unidos continuam a ser a principal potência mundial. Embora a sua população não exceda 4% da população mundial, o país representa um quarto da criação de riqueza global, 35% da capacidade de inovação global e 40% da despesa militar global. No entanto, os Estados Unidos estão começando a abandonar gradualmente seu papel de potência reguladora global", alertou.
Uma das reações tem sido uma mudança de tom em sua política externa. "A definição de interesses nacionais é mais restrita do que anteriormente. O slogan América Primeiro substituiu Líder do Mundo Livre, mas esta mudança de paradigma tinha sido iniciada antes do governo Trump e espera-se que continue além disso", apontam.
Do outro lado, está a China, que voltou a ser uma das potências mundiais, depois de séculos de ausência na mesa dos principais atores. "O Estado unipartidário chinês criou uma dinâmica econômica colossal e está se tornando uma potência tecnológica e científica", disse.
"O capitalismo de Estado é acompanhado por uma narrativa nacional que mais uma vez faz referência aos princípios marxistas-leninistas. A adaptação gradual da China ao modelo de desenvolvimento ocidental, esperada há anos, não se concretizou", constatam. "Na política externa, o país é agora a única grande potência com uma visão clara do futuro", completam os experientes suíços.
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