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Jamil Chade

Por vaga na ONU, Bolsonaro enfrentará seu primeiro teste internacional

Jamil Chade

19/08/2019 04h00

Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, debateu em julho violações contra ambientalistas, líderes indígenas e ativistas. Divulgação

 

GENEBRA – O governo de Jair Bolsonaro enfrentará seu primeiro teste de popularidade internacional. O Brasil é um dos candidatos para ocupar uma vaga no Conselho de Direitos Humanos da ONU para o período a partir de 2020. Mas, para isso, precisa somar mais de 97 votos dos 194 possíveis.

A eleição ocorre em Nova Iorque em outubro. Nos bastidores, a diplomacia brasileira já prolifera reuniões e uma campanha para convencer aos demais países a votar pelo governo Bolsonaro. Fontes em Brasília admitiram ao UOL, porém, que o número de votos assegurados pelo Brasil ainda está distante da marca dos 97 apoios necessários, ainda que o processo tenha mais dois meses para ser concluído.

O governo já faz parte do Conselho da ONU e busca, no fundo, uma reeleição. Para as duas vagas reservadas para a América Latina na eleição, existem apenas dois candidatos. Portanto, a possibilidade de o Brasil ficar de fora é teoricamente pequena.

Ainda assim, o governo Bolsonaro vai descobrir até que ponto é aceito pela comunidade internacional e, no fundo, a votação se transformará em uma espécie de termômetro da popularidade e influência do país sob a gestão de um novo governo.

Na mente de muitos diplomatas está a humilhação que sofreu a Rússia, numa votação similar em 2016. O governo de Vladimir Putin foi derrotado pelas modestas diplomacias da Hungria e da Croácia. A derrota foi um sinal claro do Ocidente contra a campanha do Kremlin de apoio ao presidente da Síria, Bashar Al Assad.

Ao longo dos últimos anos, o Brasil viu de fato essa popularidade despencar. Depois de acumular 175 voto em 2008 e 184 em 2012, o governo brasileiro viu o apoio internacional cair na gestão de Michel Temer. Visto com hesitação, o Itamaraty perdeu quase 50 votos e, na eleição de 2016, ficou com apenas 137 apoios.

Para a campanha de 2019, há ainda um obstáculo extra: em apenas seis meses, o governo Bolsonaro recebeu doze cartas de relatores da ONU denunciando violações de direitos humanos no Brasil, um número recorde em tão poucos meses de um governo no país.

 

Maduro x Bolsonaro

Mas, além do Brasil, o outro concorrente para a vaga é a Venezuela, acusada pela própria ONU de violações de direitos humanos e de ter montado uma máquina de repressão. Os venezuelanos, porém, terão o apoio de Rússia, China, Irã, Turquia, Cuba e aliados nos países em desenvolvimento da África.

Dentro da América Latina, um grupo de países chegou a pensar na possibilidade de se lançar um terceiro candidato para tentar desbancar a Venezuela. Mas a proposta foi recebida com hesitação pelo Brasil.

No Itamaraty, o temor é de que um terceiro candidato aliado aos EUA poderia retirar votos do Brasil e, ao mesmo tempo, não afetar o apoio que Maduro tem de ditaduras pelo mundo. O prejudicado, portanto, seria Jair Bolsonaro, e não a cúpula chavista.

A forma encontrada pelo Brasil, portanto, foi a de conseguir o apoio do Grupo de Lima. Em julho, o bloco emitiu um comunicado conjunto em que "repudia a candidatura apresentada pelo regime ilegítimo de Maduro, em nome da Venezuela, a um assento no Conselho de Direitos Humanos da ONU e solicitam que, se eleita, o assento seja ocupado pelo governo legítimo da Venezuela".

Os países do grupo também "expressam o seu apoio à candidatura do Brasil para aquele Conselho".

Mas a posição brasileira é pouco confortável. Se o país se apresenta como a alternativa "natural" contra Maduro para as democracias do mundo, muitos governos europeus veem com hesitação as políticas de direitos humanos do chanceler Ernesto Araújo e o desmonte de diversos orgãos de consultas com a sociedade civil no Brasil.

"Vamos ter de escolher entre um governo que cometeu crimes e um governo que despreza a ONU, o multilateralismo e os direitos humanos", comentou na condição de anonimato um diplomata europeu, lamentando as opções oferecidas pela América Latina para os dois cargos.

Também foi recebido com duras crítica a lista das prioridades do governo para os próximos três anos no campo dos direitos humanos no Conselho. Trata-se, no fundo, de uma espécie de "plano de governo" e de promessas de campanha para convencer os demais países a dar seus votos ao Brasil.

Mas, apesar de o documento trazer cercas de 20 áreas de atuação, não há em todo o texto nenhuma referência explícita nem a grupos LGBTs, ao combate contra a homofobia nem à luta contra a discriminação com base na orientação sexual. Tampouco há qualquer compromisso em lutar contra a tortura e nem a reparação às vitimas da ditadura militar.

Neste caso, os protestos não vieram apenas dos governos estrangeiros. Mas principalmente da sociedade civil brasileira, irritada com a falta de consultas públicas para a elaboração da posição nacional na candidatura.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), por exemplo, não exclui se posicionar até mesmo contra a candidatura do Brasil, enquanto deputadas como Fernanda Melchionna (PSOL-RS) cobrou há duas semanas uma resposta por parte do Itamaraty sobre as reais intenções do governo ao lutar por uma vaga na ONU.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)