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Jamil Chade

O dia em que a África ajudou a salvar a Europa

Jamil Chade

15/08/2019 08h54

 

GENEBRA – 15 de agosto de 1944. Dois meses depois do desembarque da Normandia, seria a vez de o Sul da França ser liberada, criando uma pressão extra sobre as tropas alemãs. Mas dos 350 mil soldados que tomaram as cidades do Mediterrâneo, quase 200 mil deles eram marroquinos, argelinos ou do que é hoje a Costa do Marfim e Senegal.

Sem a participação das tropas coloniais, dificilmente a França teria atingido seu objetivo e a guerra poderia ter se prolongado por mais alguns longos meses, com mais outros milhares de mortos.

75 anos depois, em meio a um profundo debate sobre o nacionalismo e com partidos de extrema-direita em alta, a Europa e a França resistem em comemorar a data. Emmanuel Macron, nesta quinta-feira, fez um apelo para que prefeitos escolham nomes daqueles heróicos soldados de pele escura para batizar novas praças, ruas ou monumentos. Mas são poucos os que estão dispostos a abrir mão de votos para corrigir uma injustiça.

Numa tribuna publicado no jornal Le Monde, personalidades como o historiador Pascal Blanchard, o ex-jogador Lilian Thuram, além de Rachid Bouchareb e Alain Mabanckou deixaram claro a preocupação diante da diferença de prioridade dada pelas autoridades às comemorações dos 75 anos do desembarque na Normandia e o desembarque africano no Sul da França.

A realidade é que responsabilidade pelo "esquecimento" daquele desembarque não é apenas dos políticos do século 21. Nos meses que se seguiram ao desembarque no Sul da França, De Gaulle deixou claro que precisava mostrar ao mundo que a França tinha se liberado por si mesma. Quando as tropas francesas entraram em Paris, portanto, aqueles soldados de pele escura, muçulmanos e africanos foram descartados. A história, assim, seria feita por fotos de franceses reconquistando sua capital. Franceses brancos, membros da resistência.

Quase um século depois, parte da Europa insiste que recriar um passado que jamais existiu de pureza da raça e do cristianismo, inspirando até mesmo alguns nos gabinetes tupiniquins. Mas continua a ignorar um passado muito mais real e o papel dessas colônias na preservação do dito Ocidente.

No dia 15 de agosto de 1944, os fatos no Sul da França mostravam, uma vez mais, que a história é bem mais complexas que ideologias tentam reconstruir e selecionar. Saber e divulgar apenas parte dela apenas serve para justificar a xenofobia, escolher os heróis convenientes e perpetuar injustiças.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)