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Jamil Chade

ONU cobrará explicações de Bolsonaro sobre desmonte do combate à tortura

Jamil Chade

31/07/2019 04h00

Sede da ONU, em Genebra. Foto: Jamil Chade

 

Há dez anos o Estado brasileiro não submete seu informe sobre o que tem feito para lidar com abusos. Atos do atual governo, porém, geraram preocupação de que um desmonte dos mecanismos de controle esteja ocorrendo de forma acelerada.
GENEBRA – O Comitê contra a Tortura da ONU (Organização das Nações Unidas) alerta que o governo brasileiro acumula um atraso de cinco anos na apresentação de seu informe sobre a situação dos abusos no país e seus peritos não disfarçam que estão preocupados com as recentes declarações e atos do governo de Jair Bolsonaro.

Caso o atraso na apresentação do relatório do Brasil continue, o órgão planeja realizar um exame e cobrar respostas do Brasil, mesmo sem o consentimento do Estado.

Entre os membros do órgão, preocupa em especial a decisão de Brasilia de acabar com a remuneração dos integrantes do mecanismo de monitoramento da tortura no Brasil. Na prática, o Palácio do Planalto encerrou as atividades do grupo e o temor na ONU é que um desmonte acelerado dos instrumentos de luta contra a tortura esteja sendo implementado pelo Brasil.

O Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT) havia sido criado para justamente monitorar os abusos no país. Mas, por um decreto presidencial de 11 de junho, Bolsonaro exonerou os 11 peritos do órgão e extinguiu a remuneração dos especialistas.

De fato, no mês passado, outro órgão da ONU declarou sua insatisfação com a situação do governo Bolsonaro e solicitou um encontro com a missão do Brasil em Genebra para falar sobre o problema. O grupo indicou que tinha "sérias preocupações de que essas medidas pudessem enfraquecer o mecanismo preventivo do Brasil e, com ele, a prevenção da tortura no país".

A reunião acabou ocorrendo no dia 8 de julho e, em suas redes sociais, o Itamaraty apenas explicou que discutiu "formas de fortalecer o Sistema Nacional de Proteção e Combate à Tortura". Peritos, porém, deixaram claro que as respostas dadas pelo governo não foram suficientes.

Mas esse não é o único aspecto da tortura no Brasil que chama a atenção. Peritos, na condição de anonimato, alertam que o tom usado por Bolsonaro para falar do passado autoritário do país pode ser um sinal de alerta sobre o que virá pela frente em termos de políticas de combate aos abusos.

"O temor é que, com um presidente que justifica a tortura, jamais saberemos exatamente o que está ocorrendo nas prisões brasileiras", disse um deles.

Passado

De acordo com fontes ouvidas pelo UOL, a questão da tortura no Brasil foi sempre apontada pela ONU como um sério problema. A diferença, nos últimos dois informes da entidade, é que os peritos das Nações Unidas reconheciam os esforços tanto do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) como de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para enfrentar o problema.

No primeiro exame sobre o Brasil, em 2001, a ONU deixava claro que seu comitê registrava a "vontade política" expressada pelo Estado brasileiro de "combater a tortura". Também eram elogiadas a "franqueza e a transparência pela qual o governo reconhecia a existência e amplitude da tortura no Brasil".

Ainda assim, o órgão da ONU manifestava "preocupação com a persistência de uma cultura de aceitação de abusos por parte de funcionários públicos, com as numerosas alegações de atos de tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes em delegacias de polícia, prisões e instalações pertencentes às Forças Armadas e com a impunidade de fato de que gozam os autores desses atos".

Em 2009, no segundo exame, uma vez mais a ONU condenou a existência da tortura no país. Para a entidade, as prisões brasileiras viviam uma "superlotação endêmica, condições imundas, calor extremo e privação, além de violência generalizada e falta de supervisão adequada, o que leva à impunidade". "De fato, há impunidade generalizada para os perpetradores de abuso", denunciou.

Mas, assim como em 2001, a ONU destacou a atitude positiva do governo, assim como o fato de as autoridades terem "a consciência" e a "vontade política" para agir.

Em entrevista ao UOL, Jens Modvig, presidente do Comitê contra a Tortura da ONU, explicou que a ideia era que, em 2014, um novo informe seria apresentado pelo Brasil para explicar o que teria feito para cumprir as recomendações da ONU. Cinco anos depois, o governo jamais se manifestou.

Segundo ele, os tratados assinados pelo Brasil são vinculantes, justamente para obrigar os governos a cumprir o que se comprometeram a fazer. "Há obrigação de submeter a cada quatro anos um relatório sobre o que tem sido feito para implementar o tratado e as medidas para prevenir e lutar contra a tortura. Infelizmente, não recebemos o informe do Brasil, que era para ter ocorrido 2014", disse o médico dinamarquês, que também lidera a entidade Dignity – Instituto Dinamarquês contra a Tortura.

"Ou podemos esperar o informe do Brasil ou podemos fazer o que fizemos com Bangladesh e agendar uma revisão do país, mesmo na ausência de um informe", explicou. Nesse caso, em relatórios alternativos de ONGs e outras fontes servirão de base para o trabalho da ONU.

"Para um fenômeno sensível como a tortura, frequentemente vemos a negação de sua existência", disse Modvig. "E não é agradável. O escrutínio tem como meta trazer a realidade, tanto passada como atual, à luz e incentivar os Estados a lidar com ela", explicou.

Ele ainda lembra que o crime da tortura não prescreve e, mesmo quando ocorreram num passado distante, devem ser investigados e processos pelo Estado.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)