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Jamil Chade

Por clima, Brasil será colocado sob pressão internacional

Jamil Chade

29/07/2019 04h00

 

Novo documento do IPCC pede limites à expansão de biocombustíveis, critica agricultura intensiva e recomenda preservação da floresta.

 

GENEBRA – Apresentado por anos por diferentes governos brasileiros como parte da solução para mudanças climáticas, os biocombustíveis podem promover degradação ambiental e fome se sua produção não for realizada de uma maneira adequada.

Esse é um dos alertas que será lançado no início de agosto pelos cientistas do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC). A reunião, marcada para ocorrer em Genebra, já está sendo considerada como um dos capítulos mais importantes do debate entre a ciência e governos que colocam em dúvidas as mudanças climáticas.

A previsão é de que o debate será dominado por uma cobrança clara sobre governos para que coloquem limites na expansão dos biocombustíveis, nas monoculturas e que tomem ações concretas para reverter o desmatamento.

Fontes negociadoras também revelam que, entre os cientistas, há uma percepção de que existe um elevado risco de que a reunião testemunha um choque entre a visão dos especialistas e a do  governo brasileiro.

Nos bastidores, diplomatas admitem que o encontro deve colocar Brasil sobre uma pressão internacional.

Um documento obtido pelo UOL revela parte das conclusões obtidas por anos de estudos, entre cientistas de todo o mundo. Ganhador do prémio Nobel da Paz, o IPCC tem sido o responsável por revelar ao mundo a dimensão das transformações climáticas que enfrenta o planeta. De uma forma técnica e não política, os cientistas do IPCC constatam agora que, da maneira que está organizada hoje, a agricultura não é sustentável e pode aumentar a pressão sobre florestas e sobre a própria temperatura média do planeta.

Hoje, o desmatamento contribui com cerca de 10% a 15% das emissões de CO2. Desde 1961, 5,3 milhões de quilômetros quadrados foram transformados em terras aráveis, o equivalente a dois terços da Austrália. Para os cientistas, "a taxa e extensão geográfica de exploração de terras nas últimas décadas é sem precedentes na história humana"

Para frear essa crise, os cientistas pedem que governos abandonem políticas que acentuam a degradação dos solos. Uma ação poderia, assim, evitar vulnerabilidade de "milhões de pessoas à degradação, desertificação e fome".

Para eles, o custo da inação supera o custo da ação, inclusive para a estabilidade e prosperidade econômica.

Se nada for feito para buscar um modelo mais sustentável, os preços de alimentos aumentarão, as populações estarão menos resistentes às mudanças climáticas e o impacto pode ser "irreversível" sobre a fome e sobre os ecossistemas, dos quais a humanidade depende.

Mas um trecho em específico do documento promete causar um debate acalorado entre governos. Ao se referir à produção de biocombustíveis, o temor é sobre o avanço de cultivos em diversas partes do mundo para alimentar à indústria de energia. Na avaliação dos cientistas, há um risco real de que haja um "aumento da pressão sobre terras".

Os cientistas não negam que, de forma específica e em determinadas regiões, o uso de energia a partir de produção agrícola pode fazer sentido e até ter um impacto positivo para o clima. Mas o uso de mais de 2 milhões de quilômetros quadrados no planeta para o cultivo de produtos que serão usados para energia já poderia se traduzir em perdas reais ao planeta.

Até o ano 2100, se o planeta quiser manter o aquecimento dentro da margem de 1,5 graus Celsius, a área destinada para biocombustíveis no mundo não poderia passar de 6 milhões de quilómetros quadrados.

"O uso generalizado de vários milhões de quilômetros quadrados podem afetar o desenvolvimento sustentável com o aumento de riscos, potencialmente consequências irreversíveis, para segurança alimentar, desertificação e degradação de terras", alertam. Na avaliação do grupo, a produção de biomassas em monoculturas, irrigadas e com fertilizantes pode levar à degradação dos solos.

A previsão dos especialistas é de que as terras que precisariam ser usadas para absorver o CO2 da atmosfera acabariam sendo usadas para bioenergia. Outro alerta é de que tal produção poderia deslocar o cultivo de alimentos para terras menos férteis, aprofundando assim a fome em determinadas regiões. Nesse caso, a África Sub-Saariana e regiões asiáticas seriam as mais atingidas.

A avaliação é de que, mais que biocombustíveis, a melhor forma de contribuir para frear o aumento de temperaturas é a gestão de terras e medidas concretas para frear o desmatamento.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)