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Jamil Chade

Em crise inédita, sistema de refúgio no Brasil tem fila de 180 mil pessoas

Jamil Chade

03/07/2019 04h00

24.ago.18 – Local de registro no posto da Polícia Federal em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela (Joan Royo/UOL)

Sem estrutura, país só tem 15 funcionários para analisar pedidos de estrangeiros por proteção. Em quatro anos, apenas 2.000 decisões de mérito foram tomadas.

 

GENEBRA – Com apenas 15 funcionários para entrevistar estrangeiros e decidir sobre o destino de famílias inteiras, o governo brasileiro acumula uma fila de 180 mil pessoas aguardando para ter seus pedidos de refúgio examinados. Enquanto isso, esses estrangeiros permanecem num limbo jurídico, incapazes de recomeçar a vida.

No mundo, 3 milhões de pessoas aguardam por uma decisão sobre a eventual proteção. Mas só o Brasil somava ao final de 2018 um total de 152 mil pessoas nessa situação, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). O número é superior aos 105 mil da Itália, 89 mil da França, 78 mil do Canadá e 76 mil da Grécia.

Num evento organizado na ONU pela entidade Conectas, o assunto foi alvo de debates entre especialistas e o governo. Hoje, somados os seis primeiros meses de 2019, as entidades estimam que esse número na fila da proteção já seja de 180 mil, algo inédito.

Por conta do fluxo de venezuelanos, o Brasil se transformou no sexto maior destino de solicitantes de asilo, ultrapassando alguns dos tradicionais destinos de refugiados do mundo, como Grécia, Espanha e Itália. Em 2018, 80 mil pessoas fizeram solicitação de asilo. Em 2016, por exemplo, foram apenas 10,3 mil pedidos.

Mas os especialistas alertam que a Venezuela não explica sozinha o acúmulo de casos não tratados. Segundo João Chaves, da Defensoria Pública da União em São Paulo, apenas 2.000 decisões de mérito foram tomadas nos últimos quatro anos. Essas são decisões que examinam o conteúdo da solicitação para deferir ou indeferir. Outras decisões puramente formais também foram tomadas, mas apenas para extinguir processos por morte ou desistência.

Para ele, essa é "a prova das falhas do sistema de refúgio no Brasil". "Gostaríamos de ver medidas concretas", disse, cobrando o governo. "O Brasil precisa enfrentar isso. Não se pode ficar enxugando gelo."

Thamyres Lunardi, da entidade Cáritas, conta que, em alguns casos, famílias têm aguardado até sete anos para que seus pedidos de refúgio sejam concluídos. "Alguns chegam aos nossos escritórios e dizem que, depois de quatro anos no Brasil, até hoje não foram nem sequer entrevistados pelos funcionários do governo", disse.

Os especialistas apontam que a crise começou em 2016, quando uma colaboração entre a ONU e o governo brasileiro foi suspensa. A solução foi a contratação de funcionários da Infraero que, depois de um treinamento, passaram a ser os responsáveis por realizar as entrevistas e decidir quem cumpria os requisitos para ser considerado refugiado. Dos 15 funcionários, seis estão em São Paulo.

"Estamos muito preocupados", disse Thamyres. "As famílias nos perguntam quando é que seus casos serão tratados e nós não temos resposta", afirmou.

22.fev.2019 – Pessoas cruzando a fronteira da Venezuela com o Brasil em Pacaraima, Roraima (Ricardo Moraes/Reuters)

Camila Asano, da Conectas, também aponta para o que a longa fila representa. "Isso mostra um grande despreparo do sistema brasileiro de refúgio, que não tem investido onde precisa", disse. Segundo ela, são 100 mil venezuelanos nessa situação.

"Isso mostra o quanto a falta de vontade política vai gerando uma situação burocrática e institucional insustentável." Camila lembra que pessoas já sob forte pressão emocional são colocadas em "esperas agonizantes".

O governo diz que vem tomando medidas para tentar lidar com essa realidade. Mas cita o salto no número de pedidos de asilo como parte da explicação para o acúmulo. Segundo o Itamaraty, foram 33 mil solicitações em 2017, contra 80 mil em 2018.

Também indicou que modificou há poucas semanas o status concedido aos venezuelanos, que passaram a ser tratados da mesma forma que os sírios.

Desde junho, o Estado brasileiro considera que todos os venezuelanos teriam direito à proteção, por conta das violações generalizadas de direitos humanos no país vizinho. Antes disso, muitos teriam de provar que eram vítimas de perseguição ou violência. O restante era tratado apenas como imigrante.

Na avaliação do governo, tal situação deve acelerar os exames dos casos e, assim, reduzir a fila acumulada.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)