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Jamil Chade

"Vi algo doente na sociedade", diz diretora de filme sobre impeachment

Jamil Chade

19/06/2019 06h00

Petra Costa, diretora do filme "Democracia em Vertigem"

Nesta quarta-feira, vai ao ar no Netflix documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff (PT) e os anos de turbulência na política brasileira. Ao blog, a autora do filme, Petra Costa, faz uma análise da atual situação nacional.

Em "Democracia em Vertigem" (The Edge of Democracy), Petra mergulha o público na vertiginosa realidade da disputa pelo poder no Brasil.

Em pouco menos de duas horas, a voz pausada e serena da própria diretora que narra o documentário se contrasta com a violência dos atos, com os ataques à democracia e com a turbulência do cenário político nacional dos últimos anos.

Ovacionado por muitos nos lugares por onde passou, o filme foi recebido no exterior como um recado sobre a falta de garantias de que um regime democrático irá sempre prevalecer. A obra esteve no Festival de Cinema e Direitos Humanos de Genebra; no Festival Sundance e em San Francisco, nos EUA; no Cph:dox, na Dinamarca; além de em Toronto e em Lisboa.

Eis os principais trechos da entrevista:

UOL – Há uma frase emblemática do filme que diz que a democracia brasileira e você têm a mesma idade e que, aos 30 anos, você imaginaria que já estaria pisando em terra firme. Se não estamos em terra firme, o que então está ocorrendo?

Petra Costa – A minha sensação é que a terra começou a rachar em 2016, com o nível de polarização em que o país entrou. Como dizem alguns especialistas, a polarização é um dos fatores que levam a democracia a morrer. Essa polarização vem de muito coisas. Mas concordo com o que dizem os autores de "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), que essa situação ocorre principalmente por não se respeitar as normas não escritas: respeito mútuo e autocontrole.

O que seria exatamente isso na prática?

É não chamar seu oponente de comunista, terrorista, fascista. Não falar que o outro é financiado por agentes estrangeiros, seja pela Venezuela ou pelos EUA. Mas encará-lo como um oponente legítimo. E autocontrole é saber que você tem, constitucionalmente, muitos mecanismos para paralisar o governo, mas você terá o autocontrole de não usar, pelo bem da democracia.

Entre 1994 e 2013, a democracia brasileira estava muito saudável e os partidos, de uma forma ou de outra, respeitavam essas normas. Mas, nas eleições de 2014, todos os partidos passaram a não respeitar isso. Seja do PT com Marina Silva, de Aécio Neves com Dilma Rouseff, de Dilma com Aécio. Quando a oposição decide pedir o impeachment de Dilma, logo depois das eleições, e depois foram procurar o crime para justificar o impeachment, o que eles argumentam é uma bomba atômica para qualquer sociedade.

Um impeachment controverso tira a crença, e a democracia funciona na base da confiança. A confiança do eleitor com a classe política, com as instituições. Foi uma bomba atômica na democracia brasileira e as pessoas passaram a não acreditar na democracia. Tanto que, em 2016, houve uma sondagem que mostrava que 20% da população achava que ditadura seria melhor que a democracia.

 

Essa bomba atômica afetou tanto a esquerda quanto a direita?

Acho que sim. A população perdeu a confiança na classe política, em geral. Não só pelo impeachment, mas também pela Lava Jato que revelou um esquema de corrupção. Hoje, as pessoas não confiam na classe política. Muitos falam: eu colocaria uma bomba no Congresso. É essencial a classe política resgatar essa confiança da população, seja voltando às bases, entrar mais em diálogo, voltar a levar em conta as normas não escritas. A população tem também a responsabilidade de voltar a se engajar politicamente.

Por qual motivo você opta por contar tudo isso em primeira pessoa?

Outros filmes meus eu também conto em primeira pessoa. Era mais para mostrar como o pessoal é político. Uma gravidez, uma relação amorosa tem dimensões universais e políticas. Nesse filme, o sentido é outro: como o político pode ser pessoal. Como uma situação política atravessa uma pessoa de forma avassaladora.

Quando eu digo que alguma coisa está doente na sociedade brasileira, eu senti que tinha um trauma acontecendo, e senti esse trauma me afetando emocionalmente. Não conseguir dormir, acordar com susto e pensando: o que vai ocorrer com o Brasil? E muitas outras pessoas viveram isso.

E eu queria falar justamente sobre isso. A relação do cidadão com sua democracia. Uma relação tão importante como uma relação amorosa. Como é tão doloroso quando entra numa crise, é tão doloroso como perder uma pessoa querida. Seja de qual parte da história você estiver, o Brasil inteiro passou por um período muito dolorido. E o filme é uma tentativa de falar dessa dor. Eu mesmo senti que envelheci dez anos nestes três anos. Tinha dias que pareciam um século.

Num dos trechos, você aparece em um vídeo amador, colocando seu primeiro voto na urna. O sorriso estava de orelha a orelha. Quando é que aquele sorriso se desfez?

Demorou. Eu acho que eu fui um pouco lenta para perceber o que estava ocorrendo. Eu estava fora do Brasil fazendo meu segundo filme e demorei para entender. Mas o primeiro sinal foi um vídeo que mostrava uma comparação das campanhas nas ruas e vi cenas de pessoas defendendo a volta da ditadura. Aquilo me assustou muito.

Quando eu voltei ao Brasil, em 2015, percebi uma tensão muito latente, que se confirmou na primeira manifestação que eu fui filmar em março de 2016. Para mim, foi um dos momentos mais assustadores. A praia de Copacabana de verde-e-amarelo, ouvindo pessoas falando na volta da ditadura. Deu arrepio. Vi que havia algo de doente na sociedade que eu queria investigar mais.

Você teve acesso a muitos gabinetes. O que você viu?

O Congresso Nacional é fascinante e assustador. Primeiro, porque ninguém se escuta. Ninguém. Aquela foto dos selfies é um [pintor espanhol Diego] Velázquez que ressuscita e resume o estado da política brasileira [se referindo a um retrato daquele momento]. Todos com seus celulares, fazendo selfie. E se fazia de tudo, menos escutar quem falava no parlatório. [É preciso] Tentar entender como se tomam decisões de âmbito nacional, num contexto desse.

Tem algo de muito errado sobre como o Congresso funciona.

Também tem deputados como dão o sangue para defender os direitos humanos no Brasil. É uma vida árida, de muito sacrifício e triste. Há uma generalização do político bandido. Mas existem verdadeiros soldados que estão lutando pelo bem do país.

O filme vai chegar a um país rachado. Existe o risco de você estar falando apenas aos "convertidos"?

Olha, o risco existe. Mas eu tenho me surpreendido sobre como pessoas com posições políticas diferentes da minha têm visto o filme e apreciado pelo valor cinematográfico, por abordar de forma sincera o assunto.

Espero que possa engajar as pessoas de diferentes posições políticas, numa conversa sobre os valores básico da democracia.

Quem é Jair Bolsonaro no seu filme?

Era um deputado que, naquele época, não era levado a sério. Ele me deu um acesso importante e que mostrou o que ele pensa e que muitos no Brasil pensam. É muito diferente do que eu penso, mas espero que ele se sinta bem representado.

Ainda falta autocrítica na esquerda brasileira?

Sem dúvida. A posição do [ex-ministro] Gilberto Carvalho no filme é algo que admiro. Em toda crise, o primeiro passo é a autocrítica e todas as partes envolvidas precisam fazer uma autocrítica muito forte. PT, Lula, a imprensa, o PDSB, o governo. O Brasil, para tirar uma epifania dessa crise, precisa passar por uma autocrítica muito profunda.

A crise terminou?

Não, de forma nenhuma. A própria eleição é muito questionável. Os recentes vazamentos [do site The Intercept Brasil] mostram que houve complicações na eleição. O fato de o candidato não ter podido competir por decisões judiciais que agora se mostram talvez politizadas mostra que essa eleição não foi uma eleição normal.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)