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Jamil Chade

"Brasil não está preparado para combater globalização do crime"

Jamil Chade

09/06/2019 04h00


GENEBRA – O Brasil precisa de uma lei geral de cooperação internacional para combater o crime e a corrupção e, apesar dos avanços na Operação Lava Jato, o país continua "muito atrasado nesse campo". O alerta é de Vladimir Aras, candidato ao cargo de Procurador-Geral da República e ex-secretário de Cooperação Internacional do MPF entre 2013 e 2017.

Em entrevista ao blog, Aras traçou os avanços registrados nos últimos anos e destacou as dificuldades ainda existentes no país. A eleição ocorre no dia 18 de junho.

Pare ele, o Brasil "infelizmente não está preparados para dar conta desse problema, porque não temos polícia de fronteiras; porque, salvo pelo excelente serviço prestado pela Marinha do Brasil, não temos embarcações suficientes para a guarda costeira; porque não usamos adequadamente as tecnologias disponíveis para fiscalização aduaneira, portuária e aeroportuária; e porque grandes extensões de nossas fronteiras não são devidamente fiscalizadas por falta de recursos públicos".

"Por outro lado, ainda não implementamos todos as convenções internacionais a que nos obrigamos na luta contra o crime", disse. "Não somos partes em tratados importantes, como os do Conselho da Europa, a exemplo da Convenção de  Budapeste, sobre cibercrime e de outras sobre transferência de condenados e extradição. Não temos sequer uma lei brasileira de cooperação internacional", alertou.

"Para piorar, os MPs sul-americanos são pouco integrados, o que dificulta o enfrentamento dos crimes transfronteiriços. Não há regulamento para vigilância e perseguição transfronteiriças. Em suma, o marco normativo e as estruturas orgânicas ainda estão longe de serem suficientes", completou.

Com ampla experiência internacional e palestrante em diversos seminários pelo mundo, Aras se especializou no combate ao crime organizado, corrupção e terrorismo. No fim de semana, ele ganhou oficialmente o apoio de alguns procuradores das forças-tarefas da Lava Jato para liderar a PGR.

Eis os principais trechos da entrevista:

Nos últimos anos, ficou claro que a lava jato só avançou graças a cooperação internacional. Qual é a dimensão que ganhou esses esforço internacional do MPF sob tua gestão?

O caso Lava Jato é emblemático por vários aspectos. Muitas boas práticas foram testadas e empregadas e várias lições foram aprendidas pelo MPF. Costumo dizer que essa investigação se apoia em pelo menos seis pilares. Um deles é a cooperação internacional. Tanto a cooperação recebida pelo Brasil, especialmente do MP da Confederação Suíça, quanto a que prestamos a outros MPs, foram fundamentais para a expansão do caso neste e noutros países, sobretudo na Europa e nas Américas.

Mais de 700 pedidos de cooperação internacional foram enviados e recebidos, e puderam ser cumpridos adequadamente porque tínhamos a secretaria de cooperação internacional, estruturada a partir de 2013, com pessoal capacitado, cultura de cooperação, redes de contato e boas ferramentas de trabalho. Tive a honra de gerir essa unidade entre 2013 e 2017. Graças a casos penais e não penais, nos últimos anos o MPF conseguiu cumprir seu planejamento estratégico e se tornou uma instituição conhecida e respeitada  também internacionalmente por sua atuação na tutela de direitos e na luta contra o crime e a corrupção.

É preciso prosseguir no esforço de integrar ainda mais as operações dos MPs nas Américas, seja com o apoio da Ameripol ou diretamente pela futura Amerijust,  e incrementar a cooperação do Brasil com órgãos da justiça europeia, via Eurojust. Precisamos também aperfeiçoar o complexo normativo brasileiro e o conjunto de tratados nesta área, tarefas de que me ocultei quando exerci o cargo de SCI.

Qual o valor que conseguiu ser bloqueado até hoje na Lava Jato e outros processos? E por que é ainda tão difícil recuperar o dinheiro?

Os últimos 15 anos foram de grande aprendizado para o MP brasileiro neste campo. Casos precursores, como o do TRT/SP, Rocha Matos, Maluf, Propinoduto, Jorgina e Banestado, foram essenciais para que aprendêssemos a seguir o dinheiro também internacionalmente. Mais recentemente passamos a adotar a estratégia de usar redes de recuperação de ativos e de inteligência financeira para essa localização. Rastrear dinheiro no exterior tornou-se menos difícil devido a novos tratados penais e tributários. Refiro-me ao CRS da OCDE e COE e ao modelo FATCA, na cooperação bilateral com os EUA.

No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. Entre 2004 e 2014, toda a justiça criminal brasileira havia conseguido recuperar apenas 45 milhões de reais. Hoje essa cifra já passou alcançou a casa dos bilhões. No entanto, nosso país vem sendo continuamente espoliado ao longo de décadas, e diante da enorme lucratividade da criminalidade organizada, especialmente do narcotráfico, do tráfico de armas, de animais e de seres humanos, é certo que ainda há muito por fazer. É essencial, por exemplo, que o STF amplie seu entendimento sobre a execução penal após o duplo grau para que também possam valer os efeitos automáticos da condenação, notadamente o confisco.

Sem isso, as repatriações demoram demasiadamente e podem resultar infrutíferas, devido à prescrição penal. Neste caso, valores bloqueados no exterior têm de ser liberados. Outro tema a enfrentar é o do confisco alargado, que poderia ser introduzido na ordem jurídica brasileira pelo Congresso Nacional. Há também a necessidade de instituir a ação de extinção de domínio no Brasil. Essas ferramentas seriam muito úteis a recuperação internacional de ativos.

Existe muita coisa ainda a ser revelada no exterior?

Se tomarmos em conta as cifras ocultas da criminalidade econômica e de colarinho branco, a resposta é sim. Se somarmos a isso, o proveito ou produto de crimes praticados por organizações criminosas transacionais, a resposta será categoricamente sim. O narcotráfico internacional movimenta centenas de toneladas de cocaína todos os anos de portos da América do Sul para portos europeus e africanos. Apenas um ínfima parcela do que atravessa o Atlântico em portêiners, cargueiros e veleiros é aprendida. O tráfico de pessoas também gera lucros surpreendentes. A corrupção arrasta somas impressionantes para bancos no exterior.

Não tenho dúvidas de que a insegurança pública no Brasil, a criminalidade violenta, beneficia-se diretamente de nossa incapacidade de enfrentar os crimes transnacionais e a lavagem de dinheiro internacional. A integração dos mercados e das economias exige também a integração de órgãos como o Ministério Público no plano global, o que depende da formalização de novos tratados de cooperação e da simplificação de suas formas.

 

 

O crime obviamente ganha proporções transnacionais. O Brasil está preparado para enfrentar esse cenário?

É inevitável que facilidades e utilidades propiciadas pela globalização acabariam sendo utilizadas não só para o desenvolvimento socioeconômico, mas também para a expansão do crime.

Infelizmente não estamos preparados para dar conta desse problema, porque não temos polícia de fronteiras; porque, salvo pelo excelente serviço prestado pela Marinha do Brasil, não temos embarcações suficientes para a guarda costeira; porque não usamos adequadamente as tecnologias disponíveis para fiscalização aduaneira, portuária e aeroportuária; e porque grandes extensões de nossas fronteiras não são devidamente fiscalizadas por falta de recursos públicos.

Por outro lado, ainda não implementamos todos as convenções internacionais a que nos obrigamos na luta contra o crime.

Não somos partes em tratados importantes, como os do Conselho da Europa, a exemplo da Convenção de  Budapeste, sobre cibercrime e de outras sobre transferência de condenados e extradição. Não temos sequer uma lei brasileira de cooperação internacional.

Para piorar, os MPs sul-americanos são pouco integrados, o que dificulta o enfrentamento dos crimes transfronteiriços. Não há regulamento para vigilância e perseguição transfronteiriças. Em suma, o marco normativo e as estruturas orgânicas ainda estão longe de serem suficientes.

Na minha gestão na SCI/PGR procurei promover essas agendas, inclusive para que o Brasil ratificasse o Acordo de Foz do Iguaçu sobre o Mandado Mercosul de Captura e o Acordo de San Juan sobre Equipes Conjuntas de Investigação. O grande passo porém na luta contra o crime em nosso hemisfério será a criação da Amerijust, para integrar os Ministérios Públicos, os Attorney General Offices e as Fiscalías do continente.

Quais são os obstáculos para o País?

O subdesenvolvimento continua sendo o maior dos nossos desafios. Precisamos superar o atraso socioeconômico e levar o País adiante. O desenvolvimento econômico e a expansão da infraestrutura do País são compatíveis com políticas de proteção ambiental. Por outro lado, devemos manter o foco na luta contra a corrupção. As pessoas mais pobres e vulneráveis são as que mais sofrem com a corrupção estrutural, que deprime a capacidade estatal de implementar políticas públicas, sobretudo de saúde e educação.

São também esse grupos economicamente marginalizados que mais sofrem os efeitos da violência urbana e rural e da expansão do tráfico de drogas, que alicia jovens para suas hostes. Educação, saúde pública e segurança pública de qualidade devem ser os grandes temas nacionais e merecem a atenção do Estado e da sociedade brasileira.

Em termos de lavagem de dinheiro, a mera abertura de uma conta no exterior já parece ser um modelo ultrapassado e vemos uma complexa rede de transferências e manobras. O que vem sendo usado como "inovações" como instrumento de lavagem de dinheiro ?

Há várias tipologias comuns e antigas e outras tantas novidades sendo desenvolvidas para dificultar o rastreamento de valores no exterior. O uso de moedas digitais é uma delas. Lavadores de capitais também têm procurado novas praças internacionais para ocultação patrimonial, no sudoeste asiático, por exemplo.

Tais criminosos, cada vez mais especializados, também aproveitam falhas de controle em instituições financeiras para a movimentação de recursos ilícitos e mecanismos alternativos de remessa de valores, como a hawala, continuam sendo importantes.

A pressão política ainda impede um avanço maior na cooperação internacional?

Precisamos de uma lei geral de cooperação internacional no Brasil para dar mais segurança ao Ministério Público, ao Judiciário e aos investigados. A Suíça tem sua lei desde 1981. Portugal aprovou a sua há duas décadas. O Brasil está muito atrasado nesse campo.

O MPF, o MJ e o MRE podem também aperfeiçoar sua articulação na cooperação ativa e passiva, cujos procedimentos devem ser simplificados. É fundamental que tenhamos avanços na cooperação transfronteiriços para enfrentar o crime organizado, inclusive os tráficos de drogas, pessoas e armas, assim como mecanismos modernos de cooperação, como equipes conjuntas de investigação e mandados regionais de captura e de produção de provas, no âmbito do Mercosul.

No plano mais geral das Américas precisamos avançar na diplomacia judiciária, com a criação da Amerijust, segundo o modelo da Ameripol e da Eurojust, aumentando a integração dos ministérios públicos do nosso hemisfério. A evolução da chamada "diplomacia judiciária" é essencial para que se tenha mais eficiência na captura de foragidos, na localização e repatriação de ativos e na obtenção de provas no exterior. Por outro lado, é essencial que a legislação brasileira de proteção de dados que permitam a troca internacional de informações entre ministérios públicos e polícias, nacionais e estrangeiros.

A caça aos corruptos está fechando o cerco? O que se vê como modelo?

É cada vez mais difícil esconder dinheiro no exterior, o que não significa que seja impossível fazê-lo. É menos fácil que outrora, porque hoje o MPF faz parte de redes de recuperação de ativos, temos acesso direto a vários MPs de países importantes. As redes policiais, sobretudo a INTERPOL, também se aperfeiçoaram. Há também redes de cooperação de unidades de inteligência financeira, como o COAF, e de outros entes como o Fisco e a CVM.

Ao lado disso, há os grandes acordos da OCDE e do COE para troca automática de informações tributárias, assim como modelos bilaterais com base na lei FATCA dos EUA. Esse conjunto de conexões, quando usados com sabedoria pelo MP ou pela Polícia, pode permitir o rastreamento mais eficiente de dinheiro sujeto escondido no exterior. A sobreposição dessas redes de informação forma um reticulado que aumenta a capacidade de identificar ilícitos e confiscar bens, direitos e valores no exterior, o que se dá também no campo do financiamento do terrorismo.

E o PCC?

Grandes facções criminosas brasileiras estão progredindo rumo ao Norte e Oeste do País e buscando dominar a logística de  produção e distribuição de drogas nas nações vizinhas, sobretudo nos países produtores de cocaína.

É preciso integrar os MPs brasileiros e aproximá-los de integrantes do sistema brasileiro de inteligência, especialmente do Exército Brasileiro, para aumentar a eficiência da justiça criminal brasileira quanto a essas organizações criminosas, que já são transnacionais.

A área plantada de cocaína na Colômbia cresceu dezenas de milhares de hectares depois do acordo de paz com as FARC. Essa droga tem como destino mercados consumidores da Europa e dos EUA, mas também alcança o Brasil como país de trânsito ou de consumo. Precisamos também proteger nossa economia de ciclos de lavagem de dinheiro relacionados ao narcotráfico, que é bilionário e se aproveita da corrupção e da violência.

Por outro lado, o modelo penitenciário federal precisa ser consolidado e difundido em todos os Estados do Brasil, ao lado da melhoria das condições de cárceres, em linha com a convenção internacional de 1984.

É igualmente importante que projetos de lei como os do ministro Sérgio Moro e o resultante da comissão de juristas presididos pelo ministro Alexandre de Moraes sejam aprovados. Ali há propostas essenciais para aperfeiçoar a justiça criminal brasileira, especialmente os acordos penais (plea bargain) e de não persecução penal, o confisco alargado e regras de proteção a whistleblowers.

Qual a importância da lista tríplice para o MPF?

Todos os 29 ministérios públicos brasileiros têm listas tríplices oficiais, previstas na Constituição e nas leis. A exceção é o MPF. Desde 2001 temos feito uma analogia com esse modelo democrático, que surgiu graças à Lei Complementar 40/1981, durante o governo Figueiredo. Não se trata de uma escolha sindical. Processos semelhantes existem para a formação dos tribunais nas vagas do chamado quinto constitucional. É importante que uma instituição atomizada como o MPF tenha uma liderança afirmada por um processo democrático, para propiciar a coesão e a uniformidade da atuação institucional.  O presidente Jair Bolsonaro sempre teve uma boa relacionamento com o MP brasileiro e compreende a importância de legitimação democrática.

O que o sr. achou das declarações do vice-procurador-geral da república Luciano Maia sobre a condenação de Lula e sobre o uso político da Lava Jato?

Discordo da manifestação do vice-PGR de Raquel Dodge. A condenação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva foi confirmada pelo TRF-4 e pelo STJ. A execução penal da sentença após o duplo grau é essencial para a efetividade da justiça criminal brasileira. O processo deve ter começo, meio e fim. A lei penal deve valer para todos.

Preocupa-me o fato de essas declarações terem ocorrido no estrangeiro em evento na Santa Sé. O Vice-PGR estava em missão oficial no exterior em representação do MPF. O colega foi designado pela PGR Raquel Dodge para ir ao Vaticano e deveria ter exercido a autocontenção.

Ele jamais poderia ter criticado o chefe de Estado de seu país – é uma regra básica em relações internacionais. Tampouco poderia ter acusado sua própria instituição, acusação incorreta, que também atinge o Poder Judiciário e o tribunal perante o qual ele próprio atua. O Vice-PGR não observou a liturgia.

Sua avaliação pessoal sobre o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro é contrária ao ordenamento jurídico brasileiro e não pode ser tomada como a posição do MP. Faltou diplomacia.

Sobre o autor

Com viagens a mais de 70 países, Jamil Chade percorreu trilhas e cruzou fronteiras com refugiados e imigrantes, visitou acampamentos da ONU na África e no Oriente Médio e entrevistou heróis e criminosos de guerra.Correspondente na Europa há duas décadas, Chade entrou na lista dos 50 jornalistas mais admirados do Brasil (Jornalistas&Cia e Maxpress) em 2015 e foi eleito melhor correspondente brasileiro no exterior em duas ocasiões (Prêmio Comunique-se). De seu escritório dentro da sede das Nações Unidas, em Genebra, acompanhou algumas das principais negociações de paz do atual século e percorre diariamente corredores que são verdadeiras testemunhas da história. Em sua trajetória, viajou com dois papas, revelou escândalos de corrupção no esporte, acompanhou o secretário-geral da ONU pela África e cobriu quatro Copas do Mundo. O jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparencia Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti.

Sobre o blog

Afinal, onde começam os Direitos Humanos? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica, quinta ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior. (Eleanor Roosevelt)